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“Quando estávamos no estrado, eu sempre ficava junto a Ron, porque queria ouvir o que ele tocava. Antes, eu ficava sempre junto ao baterista, mas agora não me preocupava com o que Tony fazia, porque se ouvia tudo o que ele fazia; o mesmo acontecia com Herbie. Mas naquele tempo não havia amplificadores, e por isso às vezes era difícil ouvir Ron. Também ficava junto dele pra lhe dar meu apoio, porque todos falavam de mim, Wayne, Herbie e Tony, mas não muito sobre ele, o que o perturbava.
Toda noite, Herbie, Tony e Ron se reuniam em seu quarto de hotel, falando do que haviam tocado até o dia clarear. Toda noite voltavam e tocavam alguma coisa diferente. E toda noite eu tinha de reagir.
A música que fazíamos juntos mudava toda noite, caralho; quem a ouvia na noite anterior, na seguinte a ouvia diferente. Cara, era um barato como a coisa mudava de noite pra noite, depois de algum tempo. Nem nós mesmos sabíamos onde aquilo ia parar. Mas sabíamos que iria pra outra parte, e provavelmente seria incrementada, e isso era o bastante pra deixar todo mundo excitado, enquanto durava.
Fiz seis trabalhos de estúdio com esse grupo em quatro anos: E.S.P (1965), Miles Smiles (1966), Sorcerer (1967), Nefertiti (1967), Miles in the Sky (1968) e Filles de Kilimanjaro (1968). Gravamos muitos outros que não foram lançados (alguns saíram depois em Directions e Circle in the Round). E houve algumas gravações ao vivo, que acho que a Columbia vai lançar quando julgar que pode faturar mais – provavelmente depois que eu morrer.
Meu repertório, as músicas que tocávamos todas as noites, começou a desgastar o conjunto. O pessoal vinha ouvir as músicas que já tinham ouvido em meus discos; era isso que os levava a fazer filas na porta: “Milestones”. “Round Midnight”, “My Funny Valentine”, “Kind of Blue”. Mas o conjunto queria tocar músicas que tínhamos gravado mas nunca apresentado ao vivo, e eu sabia que esse era um ponto sensível para eles. Eu os entendia, tinham feito todo o trabalho em “Kilimanjaro”, “Gingerbread Boy”, “Footprints”, “Circle in the Round”, “Nefertiti”, todas aquelas grandes músicas que estávamos gravando.
A gente compõe novas músicas, escreve todas as partes, passa adiante, toca e grava. Experimenta, vê que partes são necessárias, que partes precisam ser mudadas e escreve as mudanças. Escreve, faz mudanças nas paradas e recomeços dos ensaios, porque ninguém jamais viu a tal música antes. Esta nota é um sol ou um lá? É na segunda ou terceira batida? Esse trabalho todo. Depois, quando não se toca a música ao vivo, onde o pessoal pode ouvi-la nessa situação, isso pode ser uma merda, depois de todo esse trabalho. O engraçado era o seguinte: as músicas que gravávamos ao vivo e que tocávamos toda noite iam ficando cada vez mais rápidas, e após algum tempo a rapidez limitava o que podíamos fazer com elas, porque decididamente não podiam ir mais rápido do que já iam. Em vez de desenvolvermos ao vivo a música que tocávamos nos discos, encontrávamos meios de fazer a antiga música soar tão nova quanto a música nova que estávamos gravando.
Eu pagava bem ao conjunto, tipo 100 dólares por noite, em 1964, e quando nos separamos já subira pra uns 150 ou 200. Eu faturava mais, e tocava mais do que qualquer outro da praça. E eles também recebiam bem pelos contratos de gravação, e por tocarem comigo tinham mais fama do que qualquer um. Não estou me gabando, era isso mesmo. O cara tocava comigo e se tornava líder, porque depois disso, todos diziam, era a única coisa a fazer. Isso era lisonjeiro, mas também uma coisa que nunca pedi. Mas eu não tinha problemas pra aceitar o papel.
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A vida no grupo era engraçada às vezes. O único problema que tive com esse conjunto quando o reuni foi que Tony era jovem demais para tocar em boates. Sempre que tocávamos em boates, tinha de haver um lugar onde os jovens pudessem tomara refrigerantes. Pra fazê-lo parecer mais velho, mandei que ele criasse um bigode; certa vez mandei que pegasse um charuto. Mesmo assim, muitas boates não nos programavam porque ele era menor.
O conjunto girava em torno de Tony, e ele adorava quando todos tocavam um pouco fora do contexto. Por isso gostava tanto de Sam Rivers. Gostava quando um músico forçava a barra e não apenas tocasse certinho. Nisso, Tony e eu éramos muito parecidos.
Herbie era fanático por material eletrônico, e quando caía na estrada passava muito tempo comprando essas engenhocas. Queria gravar tudo, e sempre aparecia com um pequeno gravador de fita. Muitas vezes chegava atrasado, não atrasado mesmo – e não era por drogas nem nada disso – e entrava na primeira batida da primeira música. Eu olhava meio duro pro sacana, e a primeira coisa que ele fazia era se enfiar embaixo da porra do piano e instalar o gravador pra gravar tudo. Quando acabava, já tínhamos tocado três quartos da música e ele não tocara nada. É por isso que, em muitas dessas gravações ao vivo, no início não se ouve o piano. Isso era sempre uma piada no conjunto, se Herbie ia chegar atrasado ou não.
Me lembro de uma vez que Tony comprou um novo gravador e o mostrava a todos. Quando o mostrou a Herbie, Herbie se pôs a mostrar-lhe como operá-lo. Isso deixou Tony fulo, porque queria falar ele mesmo do gravador. Mas Herbie já tinha feito isso, e Tony estava puto da vida. Quando Tony ficava puto com alguém, não acompanhava essa pessoa em seus solos. Por isso eu disse a Ron:
- Observe só como esta noite Tony não vai acompanhar Herbie quando ele estiver solando.
Não deu outra. Quando Herbie começou a fazer seu solo, Tony simplesmente enrolou tudo que tocou, não lhe de nenhum apoio. Herbie olhava-o e imaginava o que estava acontecendo, Tony de cara pra cima, deixando-o lá solto. E Tony costumava se irritar com Wayne porque este às vezes apresentava-se bêbado no estrado e comia notas. Tony parava de tocar. Mas assim era Tony; se ficava puto com a gente, não podia esperar nada dele quando tocava. Mas assim que chegava a vez de outro, ele pegava no lugar mesmo onde deixara.
Uma noite, a gente tocava na Village Vanguard, e o dono da boate, Max Gordon, quis que eu acompanhasse uma cantora. Respondi que eu não acompanhava cantora nenhuma. Mas sugeri que pedisse a Herbie, e se ele quisesse, tudo bem pra mim. Assim, Herbie, Tony e Ron acompanharam a moça e o pessoal a adorou. Eu não toquei, nem Wayne. Perguntei a Max quem era ela, sabe, o nome dela. Max me disse:
- Ela se chama Barbra Streisand, e vai ser uma verdadeira grande estrela.
Por isso, toda vez que a vejo hoje em algum lugar, digo “Porra”, e balanço a cabeça.”
“Em 1964, Frances (minha esposa na época) e eu demos uma festa pra Robert Kennedy em nossa casa; ele concorria ao Senado por Nova York, e nosso amigo Buddy Gist me perguntou se eu podia dar a festa. Veio todo tipo de gente – Bob Dylan, Lena Horne, Quincy Jones, Leonard Bernstein – e até hoje não me lembro de ter conhecido Kennedy. O pessoal diz que ele esteve lá, mas se esteve, não me lembro de tê-lo encontrado.
Quem me lembro de ter conhecido nessa época foi o escritor James Baldwin. Foi trazido por Marc Crawford, que o conhecia bem. Me lembro que tive medo dele, porque era fortão pra burro e escrevera aqueles grandes livros todos, e não sabia o que lhe dizer. Mais tarde, descobri que ele sentia a mesma coisa em relação a mim. Mas realmente gostei dele de cara, e ele também gostou muito de mim. Tínhamos grande respeito um pelo outro. Ele era uma pessoa muito tímida, e eu também. Achei que parecíamos irmãos. Quando digo que nós dois éramos tímidos, me refiro a uma timidez artística, em que a gente tem cautela com pessoas que tomam nosso tempo. Vi isso nele, vi que tinha consciência disso. Mas lá estava eu com James Baldwin, na porra da minha casa. Tinha lido os livros dele e respeitava o que ele dizia. Quando vim a conhecê-lo bem, nos abrimos um com o outro e nos tornamos realmente grandes amigos. Toda vez que eu ia ao sul da França, pra tocar em Antibes, sempre passava um ou dois dias na casa de Jimmy, em St. Paul de Vence. A gente se sentava naquela grande e bela casa dele trocando todo tipo de histórias, à vontade. Depois, saíamos pra vinha dele e fazíamos a mesma coisa. Sinto realmente falta dele hoje, quando vou ao sul da França. Era um grande homem.
A essa altura, tudo dera realmente errado em meu casamento com Frances. Isso aconteceu, em parte, porque eu nunca estava em casa, passava longos períodos na estrada, e aquela longa estada em Los Angeles, quando gravava Seven Steps to Heaven, tampouco ajudou ao nosso relacionamento. A dor em meu quadril parecia piorara quando fazia frio, e por isso eu tentava ficar onde era mais quente, mas isso era apenas parte do problema. Eram as drogas, a bebida e as outras mulheres com quem eu ainda saía que causavam todos os problemas. Ela também começara a beber, e por isso tínhamos discussões que se haviam tornado realmente terríveis. Eu começava agora a frequentar esses bares da madrugada onde todo mundo vivia cheio de coca, e ela realmente detestava isso. Eu desaparecia por dias seguidos e nem sequer ligava pra casa. Frances ficava preocupada comigo e com os nervos reduzidos a frangalhos. E então, quando eu voltava, estava tão cansado e desgastado por não durmir durante dois dias que adormecia em cima da comida. Os Belafontes nos convidaram pra festa de Natal no fim de 1964 – uma das poucas vezes que não toquei em Chicago nessa época do ano – e nós fomos e eu não disse uma palavra a ninguém. Estava alto, e irritado por estar ali. Isso a magoou muito, também, porque Julie era uma das melhores amigas de Frances.
Ela começou a entrar na dela, a sair com seus amigos e buscar seus próprios interesses, e não a censurei por isso. Creio que já estávamos casados há tempo suficiente. Nossa foto no disco E.S.P, eu olhando pra ela, foi feita em nosso jardim cerca de uma semana antes dela ir embora pela última vez. Nessa época, eu tinha alucinações de que havia alguém dentro de casa. Olhava dentro dos armários, debaixo das camas, e me lembro agora que pus todo mundo pra fora, no frio – todo mundo, com exceção de Frances – pra procurar essa pessoa imaginária. Assim, lá estava eu, louco pra caralho, com uma faca de açougueiro, levando Frances comigo pro porão, à procura da tal pessoa que nem estava lá. Ela também começou a se fazer de louca comigo e disse:
- É, Miles, tem alguém nesta casa; vamos chamar a polícia.
Os policiais revistaram a casa e me olharam como se eu estivesse louco. Frances saiu quando a polícia chegou e ficou na casa de uma amiga.
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Eu a convenci a voltar pra casa. Recomeçaram as discussões aos berros. As crianças não sabiam o que fazer, e ficavam em seus quartos chorando. Acho que foi tudo isso que machucou meus filhos Gregory e Miles IV, porque era duro demais para eles enfrentarem; Cheryl foi a única dos três que saiu bem dessa merda toda, e eu sei que mesmo ela tem algumas cicatrizes.
Após nossa última discussão, quando eu joguei uma garrafa de cerveja de um lado a outro da sala e disse que queria o jantar pronto quando ela voltasse, Frances ficou com uns amigos e depois foi pra casa da cantora Nancy Wilson e o marido, na California. Eu não sabia onde ela estava, até que os jornais e as emissoras de televisão disseram que ela e Marlon Brando andavam saindo juntos. Descobri que ela estava na casa de Nancy, liguei pra lá e falei com ela – mandei outra mulher fazer a ligação. Disse que ia lá buscá-la e desliguei. Então compreendi como a tinha tratado mal, e que tudo estava acabado. Não havia mais nada a dizer, e eu não disse. Mas posso dizer o seguinte agora: Frances foi a melhor esposa que eu já tive, e quem quer que a tenha é um filho da puta de sorte. Sei disso agora, e gostaria de ter sabido naquele tempo..."
Bibliografia:”Miles Davis – A autobiografia”, por Miles Davis e Quincy Troupe. Editora Campus, pp 243 a 246
Wayne Shorter, tenor sax
Tony Williams, drums
Ronald Carter, bass
Herb Hancock, piano
1. E.S.P.
2. Eighty-One
3. Little One
4. R.J.
5. Agitation
6. Iris
7. Mood
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Cenas de Miles Davis Quintet – Live in Berlin 1967
Duração: 42:44
http://video.google.com/videoplay?docid=-6856118251010432903
Duração: 42:44
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