"O inimigo mais perigoso que você poderá encontrar será sempre você mesmo." ( Friedrich Nietzsche )

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Antonin Artaud I - Carta contra as restrições na venda do ópio

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Ao longo do post vários auto-retratos do artista, não sei especificar bem o ano de cada um (com exceção do primeiro, no qual está marcado).


“Senhor legislador da lei 1936 sobre entorpecentes, aprovada por decreto em julho de 1917, você é um castrado.
A sua lei só serve para aborrecer a farmácia mundial, sem nenhum proveito para o nível toxicômano da nação, porque:
1 - O número dos toxicômanos que se abastecem nas farmácias é ínfimo.
2 – Os verdadeiros toxicômanos não se abastecem nas farmácias.
3 – Os toxicômanos que se abastecem nas farmácias são todos doentes.
4 – O número de toxicômanos doentes é ínfimo em relação aos toxicômanos voluptuosos.
5 – As restrições farmacêuticas à droga não reprimirão jamais os toxicômanos voluptuosos e organizados.
6 – Haverá sempre traficantes.
7 – Haverá sempre toxicômanos pelo vício das formas, por paixão.
8 – Os toxicômanos doentes têm sobre a sociedade um direito imprescritível, que é o de que os deixem em paz.


É sobretudo uma questão de consciência. A lei sobre entorpecentes põe nas mãos do inspetor-usurpador da saúde pública o direito de dispor da dor dos homens - numa pretensão singular da medicina moderna de querer impor suas regras à consciência de cada um. Todos os berros oficiais da lei não têm poder de ação perante este fato de consciência: ou seja, mais ainda que da morte, eu sou dono da minha dor.

Todo homem é juiz, e juiz exclusivo, da quantidade de dor física, ou também de
vazio mental que possa honestamente suportar.
Lucidez ou não lucidez, tem uma lucidez que nenhuma enfermidade me arrebatará jamais, é aquela que me dita o sentimento de minha dor física. E se eu perdi minha lucidez, a medicina não tem outra coisa a fazer que dar-me substâncias que me permitam recobrar o uso desta lucidez. Senhores ditadores da escola farmacêutica da França, os senhores são todos uns petulantes mesquinhos; tem uma coisa que deveriam considerar melhor; o ópio é essa imprescritível substância que permite devolver a vida de suas almas àqueles que tiveram a desgraça de perdê-la.


Tem um mal contra o qual o ópio é soberano e este mal se chama Angústia, em sua forma mental, médica, psicológica, lógica ou farmacêutica, como os senhores queiram.
A Angústia que faz os loucos. A Angústia que faz os suicidas. A Angústia que faz os condenados. A Angústia que a medicina não conhece. A Angústia que o seu médico não entende. A Angústia que acaba a vida. A Angústia que corta o cordão umbilical da vida.

Pela sua lei iníqua, os senhores põem em mão de pessoas nas quais eu não tenho a menor confiança, castrados em medicina, farmacêuticos de porcaria, juízes fraudulentos, doutores de parteiras, inspetores doutorais, o direito de dispor da minha Angústia, uma Angústia que é em mim tão aguda quanto as agulhas de todas as bússolas do inferno.
Tremores do corpo e da alma, não existe sismógrafo humano que permita a quem me olhe chegar a uma avaliação mais precisa de minha dor, do que aquela fulminante, feita pelo meu espírito!
Toda a fortuita ciência dos homens não é superior ao conhecimento imediato que posso ter do meu ser. Sou o único juiz do que se passa comigo.
Voltem aos seus sótãos, médicos parasitas, e você também, senhor legislador Mountonnier, que não é por amor aos homens que você delira, é por tradição de imbecilidade. A sua ignorância acerca do que é um homem é apenas comparável à sua estupidez na pretensão de limitá-lo. Desejo que a sua lei recaia sobre o seu pai, sobre sua mãe, sobre sua mulher e os seus filhos, e toda a posteridade. Enquanto isso, suporto sua lei.”


Existe um manifesto de Artaud, divulgado em La Révolution Surréaliste (1925), de nome “Segurança Pública: A Liquidação do Ópio” (publicado no Brasil em Escritos de Antonin Artaud, tradução, notas e prefácio de Claudio Willer, L&PM, 1983 e reedições).Nele, o futuro criador do Teatro da Crueldade, antecipando o que ainda diria a respeito em suas Cartas de Rodez e outros lugares, criticava a proscrição do ópio e de outras drogas. Tomava a defesa dos dependentes ou viciados, pedindo que os deixem em paz:

“Há almas incuráveis e perdidas para o resto da sociedade. Suprimam-lhes um dos meios para chegar à loucura: inventarão dez mil outros. Criarão meios mais sutis, mais selvagens; meios absolutamente desesperados. A própria natureza é anti-social na sua essência - só por uma usurpação de poderes que o corpo da sociedade consegue reagir contra a tendência natural da humanidade.
Deixemos que os perdidos se percam: temos mais o que fazer que tentar uma recuperação impossível e ademais inútil, odiosa e prejudicial.
Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do desespero humano, não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero.”

Artaud by Gilbert Chaudanne - 1982
oil on canvas - 52 x 41,4

É uma passagem - assim como tantas outras em Artaud - de um pessimismo radical. Mas sua antevisão das conseqüências dessa proibição foi precisa:
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“Aqueles que ousam encarar os fatos de frente sabem - não é verdade? - os resultados da proibição do álcool nos Estados Unidos.
Uma superprodução da loucura: cerveja com éter, álcool carregado com cocaína vendido clandestinamente, o pileque multiplicado, uma espécie de porre coletivo. Em suma, a lei do fruto proibido.
A mesma coisa com o ópio.
A proibição, que multiplica a curiosidade, só serviu aos rufiões da medicina, do jornalismo, da literatura. Há pessoas que construíram fecais e industriosas reputações sobre sua pretensa indignação contra a inofensiva e ínfima seita dos amaldiçoados da droga (inofensiva porque ínfima e porque sempre uma exceção), essa minoria de amaldiçoados em espírito, alma e doença.”

Retirado da Revista Agulha
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quinta-feira, 24 de julho de 2008

Soneto do Membro Monstruoso e a história de Manuel Maria Barbosa du Bocage

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Esse disforme, e rígido porraz
Do semblante me faz perder a cor:
E assombrado d'espanto, e de terror
Dar mais de cinco passos para trás:
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A espada do membrudo Ferrabrás
De certo não metia mais horror:
Esse membro é capaz até de pôr
A amotinada Europa toda em paz.






Creio que nas fodais recreações
Não te hão de a rija máquina sofrer
Os mais corridos, sórdidos cações:





De Vênus não desfrutas o prazer:
Que esse monstro, que alojas nos calções,
É porra de mostrar, não de foder.

Manuel Maria Barbosa du Bocage





Biografia

Manuel Maria Barbosa du Bocage nasceu em Setúbal, no dia 15 de Setembro de 1765. Neto de um Almirante francês que viera organizar a nossa marinha, filho do jurista José Luís Barbosa e de Mariana Lestoff du Bocage, cedo revelou a sua sensibilidade literária, que um ambiente familiar propício incentivou. Aos 16 anos assentou praça no regimento de infantaria de Setúbal e aos 18 alistou-se na Marinha, tendo feito o seu tirocínio em Lisboa e embarcado, posteriormente, para Goa, na qualidade de oficial.
Casa onde nasceu Bocage. - [S.l. : s.n., 1905?]. - 1 postal : p&b. – (Setúbal ; 23)
Data provável segundo características formais e centenário da morte do poeta
P.I. 5712 P.
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Setúbal, vista por G. Landmann, gravura de J. C. Stadler.

Na sua rota para a Índia, em 1786, a bordo da nau "Nossa Senhora da Vida, Santo António e Madalena", passou pelo Rio de Janeiro, onde se encontrava o futuro Governador de Goa.Nesta cidade, teve oportunidade de conhecer e de impressionar a sociedade, tendo vivido na Rua das Violas, cuja localização é actualmente desconhecida.
Em Outubro de 1786, chegou finalmente ao Estado da Índia. A sua estadia neste território caracterizou-se por uma profunda desadaptação. Com efeito, o clima insalubre, a vaidade e a estreiteza cultural que aí observou, conduziram a um descontentamento que retratou em alguns sonetos de carácter satírico.

Rio de Janeiro, em princípios do séc. XIX (litografia de Debré)

Nomeado, na qualidade de segundo Tenente, para Damão, de imediato reagiu, tendo desertado. Percorreu, então, as sete partidas do mundo: Índia, China e Macau, nomeadamente. Regressou a Portugal em Agosto de 1790. Na capital, vivenciou a boémia lisboeta, frequentou os cafés que alimentavam as ideias da revolução francesa, satirizou a sociedade estagnada portuguesa, desbaratou, por vezes, o seu imenso talento.

O Rossio e o Café Nicola no início do século XIX.

Em 1791, publicou o seu primeiro tomo das Rimas, ao qual se seguiram ainda dois, respectivamente em 1798 e em 1804.


Folha de rosto do primeiro tomo das Rimas, publicadas em 1791

O segundo tomo, que veio a lume em 1798.
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No início da década de noventa, aderiu à "Nova Arcádia", uma associação literária, controlada por Pina Manique, que metodicamente fez implodir. Efectivamente, os seus conflitos com os poetas que a constituíam tornaram-se frequentes, sendo visíveis em inúmeros poemas cáusticos.

Palácio dos Condes de Pombeiro (actualmente Embaixada de Itália), sede da "Nova Arcádia".

Em 1797, Bocage foi preso por, na sequência de uma rusga policial, lhe terem sido detectados panfletos apologistas da revolução francesa e um poema erótico e político, intitulado "Pavorosa Ilusão da Eternidade", também conhecido por "Epístola a Marília".

Bocage retratado na época da sua prisão

Encarcerado no Limoeiro, acusado de crime de lesa-majestade, moveu influências, sendo, então, entregue à Inquisição, instituição que já não possuía o poder discricionário que anteriormente tivera. Em Fevereiro de 1798, foi entregue pelo Intendente Geral das Polícias, Pina Manique, ao Convento de S. Bento e, mais tarde, ao Hospício das Necessidades, para ser "reeducado". Naquele ano foi finalmente libertado.
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Cadeia Civil do Limoeiro, onde Bocage cumpriu pena

Pina Manique, o Intendente da Polícia que aos maus costumes e às ideias subversivas não deu tréguas, mandou prender Bocage.
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Em 1800, iniciou a sua tarefa de tradutor para a Tipografia Calcográfica do Arco do Cego, superiormente dirigida pelo cientista Padre José Mariano Veloso, auferindo 12.800 réis mensalmente.
A sua saúde sempre frágil, ficou cada vez mais debilitada, devido à vida pouco regrada que levara. Em 1805, com 40 anos, faleceu na Travessa de André Valente em Lisboa, perante a comoção da população em geral. Foi sepultado na Igreja das Mercês.
A literatura portuguesa perdeu, então, um dos seus mais lídimos poetas e uma personalidade plural, que, para muitas gerações, incarnou o símbolo da irreverência, da frontalidade, da luta contra o despotismo e de um humanismo integral e paradigmático.
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Os últimos momentos de Bocage
Casa onde morreu Bocage. - [S.l. . s.n., 1905?]. - 1 postal, p&b. – (Lisboa ; 95)
Data provável segundo características formais e centenário da morte do poeta
P.I. 5628 P.


Placa existente na fachada da casa


A Recepção de Bocage no Brasil

No dia 1 de Abril de 1786, a Gazeta de Lisboa anunciava a nomeação do Guarda Marinha Bocage para a Índia. Assim, aos 20 anos, o jovem poeta partia a bordo da Nau "Nossa Senhora da Vida", depois de receber da coroa a quantia de 84 mil réis, como nos demonstra António Gedeão, num artigo da revista Ocidente.
Rumou ao Brasil, onde se encontrava o futuro Governador da Índia, Francisco da Cunha e Menezes. Da sua estada naquele país, pouco se conhece, pois não existem fontes escritas credíveis. Sabe-se, porém, que viveu na Rua das Violas, que a sua extrema empatia se revelou exuberantemente e que conviveu com o Governador do Brasil, Luiz de Vasconcelos. Na cidade do Rio de Janeiro, teve certamente uma vida de boémia, como era seu apanágio, amores tropicais que se podem entrever num poema seu escrito na época:

"................... onde murmura
O plácido Janeiro, em cuja areia
Jazia entre delícias a ternura..."


Imagem do Rio de Janeiro em princípios do séc. XIX (litografia de Debré)

Em 1790, Bocage regressou definitivamente a Portugal. na sequência da sua missão agitada na índia, da sua deserção das forças armadas e das suas peregrinações por Cantão, cidade do sul da China, e por Macau. Remonta a este ano a publicação do seu primeiro livro, uma elegia à morte de D. Jozé Thomaz de Menezes. No ano seguinte dá à estampa o primeiro Tomo das Rimas e a sua auréola, num meio literário de pouca qualidade, consolidou-se vertiginosamente.


O primeiro livro de Bocage, publicado em 1790, após a sua chegada da Índia

Na década de noventa, Bocage escreveu febrilmente versos lapidares, ora exteriorizando a sua emotividade torrencial ora cingindo-se aos cânones clássicos, sendo a pedra de toque o talento com que cinzelava (apurava, apontava com precisão ) a realidade em poemas de filigrana depurada (Filigrana: obra de ourivesaria, formada de fios de ouro ou de prata, delicadamente entrelaçados e soldados. Ou seja, quem escreveu este texto compara os trabalhos do autor com jóias de fina pureza). Paralelamente, a sua vida de boémio incorrigível, o convívio quotidiano com os deserdados da fortuna, a insatisfação que manifestava perante o status quo, a sátira contundente aos aspectos mais negativos da sociedade - a hipocrisia, a mediocridade, a vaidade, a repressão generalizada, a corrupção e o obscurantismo -, a ironia corrosiva, a frontalidade e o seu repentismo granjearam-lhe uma ampla popularidade que rapidamente se propagou ao Brasil.
Na "Arcádia Lusitana", a associação de escritores da época, a sua permanência foi efémera: em breve se incompatibilizou com a paz dos cemitérios, com os chás e os bolinhos que a mão onipotente e férrea de Pina Manique ia generosamente distribuindo, com os versos inócuos que os poetas iam debitando, com o elogio mútuo que era lugar comum. Como corolário desta rotura (ou seja, resultado dessa ruptura), nasceram polémicas violentas: Bocage redigia poemas satíricos em que nomeava explicitamente os membros da Arcádia e estes respondiam à letra no Almanak das Musas.
Domingos Caldas, brasileiro famoso pelas modinhas que tangia à viola e ainda pelos seus versos, escreveu uma quadra pouco abonatória para Elmano:
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"De todos diz mal
O ímpio Manuel Maria
E se de Deus não disse
Foi porque o não conhecia"
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Acusação gravosa esta para a época, que podia significar um processo inquisitorial. Bocage não se fez rogado e respondeu literalmente:

"Dizem que o Caldas glutão
Em Bocage aferra o dente
Ora é forte admiração
Ver um cão morder na gente!"

Poesias eroticas, burlescas e satyricas / de M. M. Barboza du Bocage. –
Bruxellas: [s.n.], 1854
Não compreendidas na edição que das obras d’este poeta se publicou em Lisboa
no anno de MDCCCLIII. Ilustrada
BN Ero 135 (Microfilme FR 649)

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Os anos passaram ligeiros e o escritor começou a pagar a factura dos "delitos" da juventude. A sua saúde fenecia a olhos vistos. De 1800 a 1805, data da sua morte prematura, fez várias traduções do latim, dada a sua sólida formação clássica, e do francês, beneficiando obviamente do facto do avô e da mãe terem sido de origem francófona.
Em 1800, Bocage traduziu do latim dois livros da autoria de um professor brasileiro, natural da Baía, José Francisco Cardoso: Canto Heróico sobre as Façanhas dos Portugueses na Expedição de Tripoli e Elegia ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros D. Rodrigo de Sousa Coutinho.
Tendo em consideração a sua extrema popularidade, os livros de Bocage foram sendo publicados simultaneamente em Portugal e no Brasil até à independência deste país, registada em 1822.
No dia 15 de Setembro de 1865, José Feliciano de Castilho e Noronha, irmão de António Feliciano de Castilho, residente no Brasil, durante a celebração do centenário do nascimento de Bocage, sugeriu à comunidade brasileira que se fizesse um amplo peditório para se erigir, em Setúbal, uma estátua que perpetuasse o talento e a personalidade do poeta. Dito e feito: em breve se tinham recolhido 8.427.640 réis, quantia que foi depositada na casa Fortinho e Moniz, que, pouco depois, veio a falir. Felizmente, José Feliciano de Castilho e Noronha não tinha ainda depositado uma última verba, no valor de 1.583.000 réis, e o banco devolveu 162.000 réis. Foram estas duas verbas que custearam a estátua inaugurada no dia 21 de Dezembro de 1871, na presença do Marquês de Ávila e Bolama tristemente célebre por ter proibido as Conferências do Casino nesse mesmo ano -, António Feliciano de Castilho e Eça de Queirós, entre outras personalidades.
Em 1905, o "Retiro Literário Português", sediado no Rio de Janeiro, evocou sentidamente o centenário do falecimento de Bocage, com a publicação de um livro de Luiz Murat, a leitura de poemas de homenagem ao escritor, um concerto e a representação da peça de Gervásio Lobato Condessa Heloísa.

Postal editado no primeiro centenário do falecimento de Bocage, em 1905

No início do século, foi relevante a actividade laboriosa do escritor brasileiro Olavo Bilac que, em páginas de grande apuro formal, divulgou a personalidade multímoda e plural de Elmano. Na sua opinião, "em Portugal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com Bocage e depois dele decaiu." Em 1965, no âmbito das comemorações do bicentenário do nascimento do poeta, foi descerrado na cidade de Setúbal um busto de Olavo Bilac, oferecido pela Academia Brasileira de Letras. Por sua vez, o governo português ofereceu ao Brasil um busto de Bocage, que se encontra na cidade do Rio de Janeiro.
Bocage está amplamente representado no panorama editorial brasileiro. Com efeito, é possível encontrar actualmente muito mais edições bocageanas no mercado brasileiro do que no português. Livros que contemplam as várias vertentes da sua obra: a poesia erótica, lírica, satírica e epigramática, a tradução e as anedotas que lhe são atribuídas. De realçar ainda uma publicação da Federação Espírita Brasileira - Volta Bocage... - que dá à estampa versos alegadamente compostos pelo poeta no além mundo e transmitidos através de um médium...
Segundo o Professor Artur Anselmo, no nordeste brasileiro existe uma figura mitológica que se formou a partir dos nomes de Camões e de Bocage: Camonge. Um tributo relevante àqueles que são, eventualmente, os dois poetas portugueses mais perto das raízes populares.

Ilustração de Júlio Pomar
In: Os mais belos sonetos / de Bocage ; escolhidos por José Régio. – [Lisboa] : Artis, imp. 1959
BN L. 30522 V.

Época

"Reclama o teu poder e os teus direitos
Da Justiça despótica extorquidos."

Bocage viveu numa época de crise evidente. A economia era frágil, o ouro do Brasil esvaía-se no luxo desenfreado da Corte, o erário público era delapidado pelas despesas abissais da marinha e do exército. As amplas e radicais reformas encetadas pelo Marquês de Pombal foram sistematicamente subvertidas. O povo indigente gemia a sua impotência.
Em França, vivia-se um período extremamente conturbado. A revolução tinha varrido a nobreza, Luís XVI e Maria Antonieta foram decapitados e os ventos que apregoavam os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade faziam-se ouvir com fragor. Os centros de convívio lisboeta eram palco de subversão, discutia-se acesamente nos cafés e nos botequins as vicissitudes da revolução francesa, criticava-se abertamente o poder e a situação política nacional, imprimiam-se "papéis sediciosos", aguardava-se com ansiedade os livros revolucionários que chegavam a Portugal pelos portos de Setúbal e de Lisboa.

Um café da época de Bocage, onde se discutiam as ideias da Revolução Francesa

O porto de Setúbal, por onde entravam «papéis» subversivos, vindos de França

Lisboa Vista da Outra Banda, Noël, 1789

Devido à impotência da rainha D. Maria I, que enlouquecera, o poder estava amplamente concentrado nas mãos do Intendente, Diogo Inácio de Pina Manique, político que instaurou um autêntico estado policial, velando pela "ordem", proibindo livros dos filósofos franceses iluministas - Diderot, Voltaire, Rousseau, entre outros -, vigiando portos, disseminando agentes pelos cafés, os "Moscas", que, discretamente, identificavam os "fautores da subversão", os críticos mais acérrimos da política portuguesa.

D. Maria I e D. Pedro (Museu dos Coches).

O Intendente Geral da Polícia Pina Manique, inimigo feroz de Bocage

Interior de café na época de Bocage
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Em 1790, Bocage regressa a Portugal na sequência de uma estada agitada pelo Oriente. Para trás ficara uma experiência marcante em contacto com culturas díspares como a brasileira, a moçambicana, a indiana, a chinesa e a macaense. Os ideais de solidariedade social implícitos na revolução que se consolidava em França exerciam sobre ele um apelo inelutável. Em Lisboa, nos dez anos subsequentes, levou uma vida de boémia, de franco convívio com o "bas-fond" da cidade. A sua peculiar experiência de vida, a irreverência, a extroversão, a emotividade, a frontalidade, a ironia, a percepção aguda da realidade e o imenso talento que o caracterizavam, de imediato, lhe granjearam um séquito de admiradores incondicionais. No "Botequim das Parras", no "Café Nicola" e noutros lugares de encontro dos noctívagos lisboetas, Bocage foi rubricando críticas aceradas aos múltiplos problemas nacionais, ao despotismo de Pina Manique, ao ambiente de suspeição em que se vivia, à natureza do regime e à ausência dos direitos humanos mais elementares
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O Café Nicola, Fevereiro de 2000
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Por outro lado, nesta fase da sua vida, Bocage, para além da poesia lírica, compôs poemas de carácter satírico contemplando pessoas do regime, tipos sociais e o clero, facto que não agradou obviamente ao poder. Poemas como "Liberdade, onde estás? Quem te demora?", "Liberdade querida e suspirada", "Pavorosa Ilusão da Eternidade" ou um outro em que faz explicitamente o louvor de Napoleão, paradigma da revolução francesa, e a crítica do Papa conduziram-no à prisão, por crime de lesa-majestade.

Bocage dizendo poesia anti-clerical

Bocage dizendo poesia anticlerical, inspirado num quadro de Fernando Santos
(Miguel Pacheco, Filipe Almeida, Linda Costa)
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No Limoeiro, vivendo em condições infra-humanas, moveu as suas influências e beneficiou da amizade do ministro José de Seabra da Silva e da sua popularidade. Três meses mais tarde, era entregue à Inquisição, já sem o poder discricionário que outrora tivera, sob a acusação de impiedade.

Aspecto do Limoeiro, onde Bocage esteve encarcerado

José Seabra da Silva, Ministro do Reino, que desempenhou um papel vital na libertação de Bocage.

O edifício da Inquisição, em cujos cárceres Bocage entrou no dia 7 de Novembro de 1797
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Dos cárceres da Inquisição passou para o Mosteiro de S. Bento, como comprova o respectivo "Dietário", referente a 1798:
"A 17 do presente mês de Fevereiro foi mandado para este Mosteiro pelo Tribunal do Santo Ofício o célebre poeta Manoel Maria Barbosa du Bocage, bem conhecido nesta corte pelas suas Poesias e não menos pela sua instrução. Tinha sido preso pela Intendência, e ele reclamara para o Santo Ofício, onde esteve até ser mandado para este Mosteiro."

Mosteiro de S. Bento da Saúde, actual Assembleia da República, para onde Bocage foi enviado para ser "reeducado" no dia 17 de Fevereiro de 1798
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No mesmo livro, no capítulo relativo ao mês de Março, é mencionado o facto de o Abade do Mosteiro ter recebido uma carta do Tribunal do Santo Ofício, dando por finda a reclusão do poeta, por determinação de sua Majestade, e exigindo a sua transferência para o Hospício das Necessidades. Tudo leva a crer que o escritor fora tratado com excessiva brandura no Mosteiro de S. Bento, incompatível com a "reeducação" que Pina Manique animosamente prescrevera.
A 22 de Março de 1798, Bocage deu entrada no Hospício das Necessidades, em regime de vigilância apertada, sem poder, segundo ofício de Pina Manique, "sair fora sem nova ordem, nem comunicar com pessoa alguma de fora, à excepção dos Religiosos Conventuais (... ), andando em liberdade no mesmo Hospício, sem que venha abaixo às Portarias e à mesma Igreja, e nas horas de recreação poderá ir à Cerca na companhia dos Religiosos e Conventuais e assistir no Coro a todos os ofícios".

Hospício das Necessidades, actual Ministério dos Negócios Estrangeiros, para onde Bocage foi transferido por ordem do Intendente Pina Manique, a 24 de Março de 1798.

Acrescentava ainda o ditador: (... ) O Príncipe nosso Senhor espera que com estas correcções que tem sofrido tornará em si e aos seus deveres, aproveitando os seus distintos talentos com os quais sirva a Deus nosso Senhor, a S. Majestade e ao Estado, e útil a si, dando consolação aos seus verdadeiros amigos e parentes, que o vejam entrar em si verdadeiramente, abandonando todos os vícios e prostituições em que vivia escandalosamente."
Pouco durou esta reclusão. Mais uma vez o seu carisma e o seu reconhecido talento prevaleceram. Porém, a saga de Bocage com a Inquisição reacendeu-se em 1802, tendo sido aberto novo processo por denúncia feita por Maria Theodora Severiana Lobo que o acusava de pertencer à Maçonaria. Por falta de provas e provavelmente devido à saúde fragilizada do escritor, o referido processo, que pode ser consultado na Torre do Tombo, foi arquivado.
Um último aspecto é digno de menção: a censura perseguiu Bocage durante toda a sua vida. Muitos versos foram cortados, outros ostensivamente alterados, poemas houve que só postumamente viram a luz do dia. Compreende-se plenamente o seu anseio desesperado:
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LEGRAND, Charles, fl. ca 1838?-1850

Manoel Maria de Barbosa de Bocage / C. Legrand. - [Lisboa : Imprensa Nacional, 1841] ([Lisboa] : Lith. de M.el Luiz). - 1 gravura : litografia, p&b ; f. 38x26 cm
Data baseada na série a que pertence, "Retratos e biographias das personagens illustres de Portugal". - Soares, E. - Dic. icon., nº 416 F) e I Supl., p. XXVII. - Inf.te, num rectângulo, a cena da morte do poeta seguida de um terceto
BN E. 328 V.
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"Liberdade, onde estás? Quem te demora?"

Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim!), porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo, que desmaia.
Oh!, venha... Oh!, venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal que, frio e mudo,
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.

Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio e do prazer, ó Liberdade!

Bocage
Óleo e fotografia impressionada sobre tela, de Sá Nogueira, 1971
Praia Grande, col. Maria Helena Alves Ribeiro

Iconografia Bocageana

Se Camões foi o poeta dos intelectuais, Bocage foi adoptado pelo povo português como porta-voz das suas expectativas, ambições e reivindicações.
Ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, foi-se sedimentando um anedotário que tinha o escritor como principal interveniente. Por outro lado, as transgressões aos valores instituídos também eram de imediato identificadas com o nome de Bocage. Deste modo, foi-se tecendo uma lenda que continua ainda a ser alimentada.
A personalidade e a obra do poeta foram retratadas em dezenas de biografias, em oito peças de teatro, canções, múltiplos poemas, bem como em dois filmes - um português, dirigido por Leitão de Barros, em 1936, e um brasileiro, de Djalma Limongi, em 1998.

Filme realizado por Leitão de Barros sobre Bocage

Os artistas plásticos também têm querido homenagear a figura deste poeta setubalense. Entre aqueles que contribuíram com óleos, desenhos, gravuras ou caricaturas para o imortalizar, contam-se Júlio Pomar, Lima de Freitas, Vasco, Fernando Santos, Júlio Gil e Luciano Santos.
Em 1998, foi fundado, em Setúbal, o Centro de Estudos Bocageanos, que tem como escopo divulgar a obra e dinamizar a investigação acerca de Bocage. Foram realizadas por esta associação várias sessões de poesia, tendo ainda sido publicados uma colecção de postais, que reconstitui a prisão do escritor, e um livro que inclui as traduções de fábulas, bem como as de La Fontaine, por si escrupulosamente traduzidas.

Edição de postais do Centro de Estudos Bocageanos, 1999

Poema composto por Bocage sobre a sua experiência na prisão do Limoeiro

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