"O inimigo mais perigoso que você poderá encontrar será sempre você mesmo." ( Friedrich Nietzsche )

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O Coração das Trevas – Fragmentos

“Subir aquele rio era como viajar no tempo de volta aos primórdios do mundo, quando a vegetação, desordenadamente profusa, tomava conta da Terra, e as grandes árvores reinavam sobre tudo. Um rio vazio, um grande silêncio, uma selva impenetrável. O ar era quente, denso, pesado, indolente. Não havia encanto no brilho do sol. Os longos trechos do rio corriam, desertos, para dentro de sombrias distâncias. Nas margens de areia prateada, hipopótamos e jacarés tomavam sol lado a lado. As águas alargavam-se, fluindo através de um conjunto de ilhas cobertas de mato; você perderia a direção naquele rio como num deserto, e passaria o dia inteiro batendo em bancos de areia, tentando encontrar o canal, até acreditar que havia sido enfeitiçado e separado para sempre de tudo que uma vez conhecera...em algum lugar distante...talvez em outra existência. Havia momentos em que o passado nos voltava à mente, como acontece algumas vezes quando não se tem um tempo reservado só para si próprio; mas chegou na forma de um sonho agitado e turbulento, relembrando com assombro em meio à esmagadora realidade desse estranho mundo de plantas, água e silêncio. Mas toda essa quietude em nada lembrava paz. Era a quietude de uma força implacável pairando sobre inescrutáveis desígnios, olhando para você com um ar vingativo. Acostumei-me a ela mais tarde e não mais a via; não tinha tempo. Eu precisava ficar adivinhando o caminho do canal; tinha de discernir, principalmente por intuição, sinais de bancos de areia ocultos; prestar atenção em pedras no fundo; e estava aprendendo a cerrar os dentes para o coração não sair pela boca, quando raspava por acaso em algum velho e matreiro tronco submerso, que teria mandado aquele vapor de lata para o inferno, afogando todos os peregrinos; e ainda precisava ficar atento aos sinais de lenha que pudéssemos cortar à noite para navegar no dia seguinte. Quando você tem de lidar com coisas desse tipo, com meros incidentes de superfície, a realidade...a realidade..., compreendem, desvanece.

A verdade interior está oculta – para sorte nossa. Mas eu a sentia presente, mesmo assim; sentia freqüentemente seu misterioso silêncio observando minhas peripécias, da mesma forma que ela observa os senhores quando se equilibram em suas cordas bambas por – como é mesmo? – meia coroa por pirueta.”
“Tente ser cortês, Marlow”, grunhiu uma voz, e percebi que havia no mínimo um ouvinte acordado além de mim.
“Perdão. Esqueci a dor profunda que compõe o resto do preço. Na realidade, o que importa o preço, se o truque é bem feito? Vocês fazem seus truques muito bem. De minha parte, também não me saí mal, já que consegui não afundar aquele vapor em minha primeira viagem. Ainda me surpreende quando penso nisso. Imaginem colocar um homem com os olhos vendados a dirigir um caminhão numa estrada ruim. Suava e tremia consideravelmente nessa ocasião, posso lhes dizer. Afinal, para um homem do mar, arrebentar o fundo de uma coisa que supostamente deve flutuar o tempo todo sob seu comando é imperdoável. Talvez ninguém fique sabendo, mas você nunca esquece aquele baque surdo, não é mesmo? É como se fosse uma pancada no próprio coração. Você lembra disso, você sonha com isso, e anos depois ainda acorda no meio da noite suando frio. Não pretendo afirmar que aquele vapor tenha flutuado o tempo todo. Mais de uma vez enfrentou dificuldades para avançar, e teve de ser empurrado por vinte canibais em volta espirrando água. Havíamos recrutado alguns desses camaradas no caminho para a tripulação. Bons sujeitos...os canibais... mas na terra deles. Eram homens com quem se podia trabalhar, e sou grato a eles. Afinal, não se comiam uns ao outros na minha frente: haviam levado a bordo uma provisão de carne de hipopótamo que apodrecera, fazendo o mistério da selva cheirar mal em minhas narinas. Puuu! Ainda sinto o cheiro agora.
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Eu tinha o gerente a bordo e três ou quatro peregrinos com seus cajados – completos.
Às vezes, passávamos por um posto à beira do rio, e os homens brancos, que saíam apressados de barracos em ruínas, com largos gestos de alegria, surpresa e boas-vindas, nos pareciam muito estranhos – como se estivessem sendo mantidos ali em cativeiro por algum feitiço. A palavra marfim ressoava no ar por instantes...e novamente voltávamos ao silêncio, aos longos trechos desertos, à calmaria das curvas, entre as altas muralhas de nosso caminho sinuoso, reverberando com pancadas ocas o ritmo pesado da roda de popa do vapor. Árvores, árvores, milhões de árvores, imponentes, imensas, erguendo-se à grande altura; e a seus pés, junto à margem e contra a corrente, arrastava-se o pequeno vapor enfarruscado, como um lento besouro rastejando no chão de um elevado pórtico. Fazia você se sentir muito pequeno, muito perdido; contudo, no conjunto, nõa era um sentimento depressivo. Afinal, sendo pequenos, dávamos condições ao imundo besouro para seguir rastejando, exatamente como se esperava que fizesse. Para onde os peregrinos imaginavam que rastejaria, eu não sei. Para algum lugar onde esperavam obter alguma coisa. Aposto! Para mim, rastejava em direção a Kurtz...exclusivamente; mas quando os canos de vapor começaram a vazar, passamos a nos arrastar muito lentamente. Extensões de água abriam-se a nossa frente e fechavam-se atrás, como se a floresta houvesse avançado displicentemente sobre o rio, barrando o caminho de nosso retorno.
Penetrávamos cada vez mais fundo no coração das trevas.
Fazia um silêncio enorme ali. Às vezes, à noite, o som dos tambores por trás das cortinas das árvores subia o rio e permanecia ecoando fracamente, como se pairasse acima de nossas cabeças, até o romper da aurora. O que significava aquele som – se guerra, paz ou oração – não sabíamos dizer. A alvorada era anunciada por uma fria quietude; os lenhadores dormiam, suas fogueiras queimavam lentamente, o estalo de um galho nos deixaria em sobressalto.

Éramos viajantes numa terra pré-histórica que possuía o aspecto de um planeta desconhecido. Podíamos imaginar-nos como os primeiros homens tomando posse de uma herança maldita, que só seria subjugada à custa de grande sofrimento e muito esforço. Mas subitamente, ao contornarmos a duras penas uma curva do rio, vislumbramos paredes de junco, telhados de palha pontiagudos e um turbilhão de braços negros – mãos aplaudindo, pés batendo -, uma verdadeira explosão de gritos, corpos oscilando, olhos rolando, à sombra de pesada e imóvel folhagem. O lento vapor esforçava-se para avançar ao largo desse negro e incompreensível frenesi. O homem pré-histórico estava nos amaldiçoando, rezando para nós, dando-nos boas vindas – quem é capaz de saber? Fôramos apartados da compreensão de nossas referências; deslizávamos por ali como fantasmas, perplexos e intimamente horrorizados, como homens normais estariam diante de uma explosão de entusiasmo num hospício. Não podíamos compreender porque estávamos longe demais, e não lembrávamos por que estávamos viajando na noite das primeiras eras, de épocas que haviam desaparecido, mal deixando um sinal – e nenhuma lembrança.
“O lugar parecia extraterreno. Estávamos habituados a vê-lo sob a forma de um monstro agrilhoado e domado, mas ali – o que víamos ali era uma coisa monstruosa e livre. Era algo extraterreno, e os homens eram...não, não eram inumanos. Bem, vocês sabem, não havia nada pior do que a suspeita de que não eram inumanos. E essa desconfiança pouco a pouco se apoderava de nós. Uivavam, saltavam, rodopiavam e faziam caretas horrendas; mas o que mais impressionava era a idéia de que eram criaturas humanas...como nós, a idéia de que havia um remoto parentesco entre nós e aquele selvagem e apaixonado furor; mas, se éramos homens o bastante, admitiríamos que havia também dentro de nós, por mais débil que fosse, uma certa receptividade à terrível franqueza daquele alvoroço, uma vaga suspeita de que havia ali um significado, que nós – tão distantes da noite das primeiras eras – podíamos compreender. E por que não? A mente humana é capaz de qualquer coisa – porque está nela, todo passado, bem como todo futuro. O que havia ali, afinal? Alegria, medo, tristeza, devoção, valor, ódio – quem poderia dizer?

Mas a verdade...a verdade despia-se de seu manto temporal. Deixem o tolo embasbacar-se e estremecer – o homem verdadeiro saberá compreender e contemplará tudo sem pestanejar. Mas deve ser no mínimo tão homem quanto aqueles na margem do rio. Deve encontrar aquela verdade com sua própria verdade – com sua força inata. Princípios não vão adiantar. Bens, roupas, panos bonitos...que voariam na primeira sacudidela. Não. O que precisa é de uma crença deliberada. Exerceria aquele demoníaco tumulto alguma atração sobre mim? Quem sabe? Muito bem, estou escutando, posso até admitir, mas tenho uma voz também, que, bem ou mal, não pode ser silenciada. Naturalmente, um tolo, com seu pavor habitual e seus nobres sentimentos, estará sempre a salvo. Quem está resmungando? Vocês podem até imaginar, por que não fui à terra uivar ou dançar? Bem, na verdade, não fui. Nobres sentimentos, pensam vocês? Nobres sentimentos uma ova! Eu não tinha tempo. Tinha de lidar com alvaiade e tiras de cobertor de lã para a colocação de bandagens naqueles canos furados – compreendem. Tinha de vigiar o leme, evitar os troncos submersos e levar a lata velha adiante por bem ou por mal. Havia nessas coisas uma verdade superficial capaz de redimir alguém mais sábio do que eu.”
“Avistei, com o binóculo, a encosta de um morro com algumas poucas árvores e nenhuma vegetação rasteira. No cume, um prédio em ruínas aparecia meio enterrado no mato alto; de longe se viam grandes buracos negros no teto pontiagudo; a floresta o pano de fundo. Não havia cerca de espécie alguma; porém, aparentemente, houvera uma, pois, perto da casa, meia dúzia de postes delgados permaneciam de pé, em fila, grosseiramente desbastados e com as extremidades superiores ornamentadas com bolas redondas esculpidas. O arame, ou seja lá o que houvesse entre eles, havia desaparecido. É claro que a floresta cercava aquilo tudo. A margem do rio estava desimpedida, e à beira d’água vi um homem branco com um chapéu semelhante a uma roda de carroça acenando constantemente com o braço inteiro.

Examinando a beira da mata, de alto a baixo, tive quase certeza de que havia movimentos ali – vultos humanos esgueirando-se de um lado para outro. Continuei navegando prudentemente, passando defronte ao lugar, depois parei as máquinas e deixei a embarcação seguir flutuando rio abaixo. O homem na praia começou a gritar, insistindo que desembarcássemos. “Fomos atacados”, gritou o gerente. “Eu sei, eu sei. Está tudo bem”, gritou de volta o outro, entusiasmadíssimo. “Aproximem-se. Está tudo bem. Estou contente de vê-los.”
“Seu aspecto lembrava-me de algo que havia visto em algum lugar – algo engraçado. Enquanto manobrava para encostar o barco, perguntava a mim próprio; “Com quem esse sujeito se parece?”. De repente descobri. Parecia um arlequim. Sua roupa havia sido feita com algum material barato, provavelmente algodão cru, e estava coberta de remendos coloridos – azuis, vermelhos, amarelos...Remendos nas costas, na frente, nos cotovelos, nos joelhos; bandas de cor no paletó, bainha escarlate nas calças...e a luz do sol fazia com que parecesse extremamente alegre e com muito bom gosto também, pois todos esses remendos haviam sido belamente confeccionados. Rosto imberbe de garoto, bastante claro, feições indefinidas, nariz descascando, pequenos olhos azuis, sorrisos e carrancas sucedendo-se numa fisionomia aberta, como o sol e a sombra numa planície varrida pelo vento.
O arlequim na margem voltou seu pequeno nariz arrebitado para mim. “O senhor é inglês?”, perguntou todo sorridente. “O senhor é?”, gritei da roda do leme. Os sorrisos desapareceram, e balançou a cabeça, como que se desculpando pelo meu desapontamento. Logo se reanimou. “Não importa!”, gritou encorajadoramente. “Chegamos a tempo?”, perguntei. “Ele está lá em cima”, respondeu, movendo a cabeça em direção à colina e tornando-se subitamente sombrio. Seu rosto era como o céu de outono, encoberto num momento e radiante no seguinte.
Ele falava com uma tal velocidade que eu quase não dava conta. Parecia estar tentando compensar tanto silêncio, e de fato insinuou, sorrindo, que era exatamente esse o caso.

Carta de um Tarot do século XIX, com texto em Castelhano e Francês, letras em Hebraico e símbolos de inspiração egípcia e persa. Resumindo, uma autêntica pérola em termos de lâminas por seu grande exotismo

“O senhor não fala com o Sr. Kurtz?”, disse eu. “Você não fala com aquele homem – você o escuta”, exclamou com severa exaltação. “Mas agora...” fez um gesto com o braço e num piscar de olhos caiu no mais profundo desânimo. Retornou num instante, com um salto, e apoderou-se de minhas duas mãos, apertando-as continuadamente, enquanto tagarelava: “Meu irmão do mar...uma honra...um prazer...uma satisfação...Quero me apresentar...russo...filho de um arcipreste...Governo de Tambov...Quê? Tabaco! Tabaco inglês; o excelente tabaco inglês! Isso sim é camaradagem. Fuma? Onde já se viu marinheiro que não fuma?”
“O cachimbo acalmou-o, e aos poucos compreendi que havia fugido da escola, ganhara o mar a bordo de um navio russo, do qual fugira novamente, servira algum tempo em navios ingleses e estava agora reconciliado com o arcipreste. Insistiu nisso. “Mas, quando se é jovem, é preciso ver coisas, ganhar experiência, idéias, alargar a mente.” “Aqui?”, interrompi. “Nunca se sabe! Aqui conheci o Sr. Kurtz”, disse ele, jovialmente solene e recriminador. Segurei a língua depois disso. Parece que ele persuadiu uma casa comercial holandesa na costa para equipá-lo com provisões e mercadorias, e partira para o interior com o coração leve e tão ingênuo quanto um bebê. Esteve navegando aquele rio por cerca de dois anos sozinho, isolado de todos e de tudo. “Não sou tão jovem quanto pareço. Tenho vinte e cinco”, disse ele.
“Dei a ele o livro de Towson. Fez como se fosse me beijar, mas conteve-se. “O único livro que me restava, e pensei que o tivesse perdido”, disse ele, olhando-o extasiadamente. “Acontecem tantos acidentes a um homem que anda por aí sozinho, o senhor sabe. As canoas às vezes viram...e às vezes você tem de partir muito rápido quando as pessoas ficam zangadas.” Folheou as páginas. “O senhor fez anotações em russo?”, perguntei. Balançou a cabeça afirmativamente. “Pensei que estivessem escritas em código”, disse eu. Sorriu, depois ficou sério. “Tive muito problema para manter essa gente afastada”, disse ele. “Quiseram matá-lo?”, perguntei. “Oh, não!”, exclamou, calando-se em seguida. “Por que nos atacaram?”, prossegui. Hesitou, então disse acanhadamente: “Não querem que ele vá embora”.

"Não querem?”, disse eu, curioso. Balançou a cabeça com um gesto cheio de mistério e sabedoria. “Vou-lhe dizer”, exclamou, “esse homem alargou minha mente.” Abriu amplamente os braços, olhando fixo para mim...
“Eu olhava para ele, absolutamente perplexo. Lá estava diante de mim, em sua colcha de retalhos, como se houvesse fugido de uma trupe de mimos, entusiásticos, fabulosos. Sua própria existência era inverossímil, inexplicável e totalmente desconcertante. Ele era um problema insolúvel. Difícil conceber como havia sobrevivido, como pudera chegar tão longe, como conseguira permanecer ali... Por que não desaparecera instantaneamente. “Eu ia sempre um pouco mais longe”, disse ele, “depois ainda mais longe...até chegar tão longe, que já não sei mais como voltar. Não importa. Há tempo de sobra. Dá-se um jeito. O senhor precisa levar Kurtz rapidamente embora daqui...o mais rápido possível, compreende? O encanto da juventude irradiava de seus trapos multicoloridos, de sua penúria, de sua solidão, da desolação essencial de suas fúteis peregrinações. Durante meses...anos...sua vida não valera um tostão sequer; e lá estava ele, vivo, audaz, despreocupado, para todos os efeitos indestrutível, e tudo em virtude de seus poucos anos de vida e de sua irrefletida bravura. Fui seduzido por um certo sentimento de admiração...de inveja. A magia empurrava-o para frente, a magia conservava-o incólume. Certamente não queria nada da selva além de seu espaço para respirar e seguir adiante. Tinha necessidade apenas de existir e continuar avançando, com o maior risco possível e o máximo de privações.
Se alguma vez um espírito de aventura absolutamente puro, desinteressado e destituído de qualquer finalidade prática chegou a dominar um ser humano, tal era o caso desse jovem coberto de retalhos.

Quase cheguei a invejar-lhe a posse de tão modesta e clara chama. Ela parecia haver consumido todo seu eu tão completamente que, mesmo quando estava conversando com você, você esquecia que era ele – o homem diante dos seus olhos – que havia passado por essas coisas. Contudo, não lhe invejava a devoção a Kurtz. Ele não havia meditado sobre ela. Apareceu, e ele a aceitou com uma espécie de ávido fatalismo. Devo dizer que a mim parecia, de fato, a coisa mais perigosa que lhe acontecera até o momento.
“Haviam-se encontrado de uma forma inevitável, como dois navios apanhados por uma calmaria, que acabam se aproximando até finalmente roçarem os costados. Acho que Kurtz precisava de um ouvinte, pois, em certa ocasião, quando acampavam na selva, haviam conversado a noite inteira, ou, mais provavelmente, Kurtz havia conversado. “Falamos de tudo”, disse ele, extasiado com a lembrança. “Esqueci que havia alguma coisa chamada sono. A noite pareceu não durar uma hora. Tudo! Tudo!...De amor, também.” “Ah, ele lhe falou de amor!”, disse eu, achando isso muito divertido. “Não é o que o senhor está pensando”, exclamou, num tom quase passional. “Falou de um modo geral. Ele me fez ver coisas...muitas coisas.’
“Ergueu os braços para o alto. Estávamos na proa naquele momento, e o líder dos meus lenhadores, perambulando por perto, voltou para ele seus olhos pesados e brilhantes. Olhei ao redor, e não sei por que, ma asseguro-lhes que jamais, até então, aquela terra, aquele rio, aquela floresta, o próprio arco daquele céu resplandecente pareceram-me tão sem esperança e sombrios, tão impenetráveis para o pensamento humano, tão impiedosos com a fraqueza humana.
“Kurtz persuadia a tribo a segui-lo, não é verdade?”, sugeri. Mexeu um pouco as mãos nervosamente. “Eles o adoravam”, disse ele. O tom em que essas palavras foram pronunciadas foi tão surpreendente que olhei para ele percrutadoramente.
Era curioso ver aquela mistura de desejo e relutância ao falar de Kurtz. O homem preenchia sua vida, ocupava seus pensamentos, comandava suas emoções. “O que o senhor esperava?”, explodiu; “ele chegou trazendo o raio e o trovão, compreende...e eles nunca tinham visto algo semelhante – e tão aterrorizante. Ele sabia mostrar-se aterrador.

Não se pode julgar o Sr. Kurtz como se fosse um homem comum. Não, não e não! Veja bem...só para lhe dar uma idéia...não me importo que fique sabendo que ele quis me matar também, certo dia...mas não o censuro!” “Matar você!”, exclamei. “Para quê?” “Bem, eu tinha uma pequena quantidade de marfim que o chefe daquela aldeia perto da minha casa me dera. O senhor sabe, eu costumava caçar para eles. Pois bem, ele queria esse marfim, e não adiantava argumentar com ele. Afirmou que me mataria se eu não lhe entregasse o marfim e depois desaparecesse da região, pois fazia o que lhe dava na cabeça, e não havia nada no mundo para impedi-lo de matar quem ele bem entendesse. E era verdade mesmo. Entreguei-lhe o marfim. Que me importava! Mas não desapareci. Não, não. Não podia abandoná-lo. Mas tive de ter cuidado, claro, até que ficássemos amigos de novo, por um certo tempo. Teve, então, sua segunda doença. Depois disso, precisei manter-me a distância; mas não me importava. Ele passava a maior parte do tempo naquelas aldeias no lago. Quando ele descia o rio, às vezes me levava junto, outras era melhor eu tomar cuidado. Esse homem sofria demais. Ele odiava tudo isso e, de certa forma, não podia ir embora. Quando tinha oportunidade, implorava a ele que tentasse e partisse enquanto havia temmpo; oferecia-me para voltar com ele. Ele concordava, mas acabava ficando; partia outra vez em busca de marfim; desaparecia por semanas; esquecia de si próprio no meio dessa gente...esquecia-se completamente...o senhor compreende.” “Por quê? Ele está louco”, falei. Protestou com indignação. O Sr. Kurtz não podia estar louco. Se eu o tivesse ouvido falar, há apenas dois dias atrás, não ousaria sugerir tal coisa...
Eu havia feito uso do binóculo enquanto conversávamos, e estava olhando para a praia, varrendo o limite da floresta de lado a lado e atrás da casa.
A sensação de que havia gente naquele mato, tão silencioso, tão calmo – tão silencioso e calmo quanto a casa em ruínas no morro - , deixou-me apreensivo. Não havia sinal, na face da natureza, e em toda aquela surpreendente história, que não me houvesse sido apenas sugerido, em vez de revelado, com exclamações desoladas, concluídas com encolher de ombros, frases interrompidas e alusões que terminavam em profundos suspiros.

Ilustração relativa à primeira edição de “Heart of Darkness”

A selva permanecia impassível, como uma máscara...pesada, como a porta fechada de uma prisão...Olhava com seu ar de secreta sabedoria, de paciente expectativa, de inacessível silêncio.
Direcionei o binóculo para a casa. Não havia sinais de vida, só o telhado em ruínas, a longa parede de barro despontando acima do mato, com 3 buracos quadrados de janela, nenhum do mesmo tamanho; tudo ao alcance da mão, por assim dizer. Então fiz um brusco movimento, e um dos postes remanescentes daquela cerca desmantelada apareceu no campo de visão do meu binóculo. Lembram que contei ter ficado impressionado a distância por certas tentativas de ornamentação, bastante surpreendentes no contexto decadente do lugar. Agora eu tinha subitamente uma visão mais próxima, e minha primeira reação foi jogar a cabeça pra trás, como se tivesse recebido um soco. Examinei, então, cuidadosamente, poste por poste, com o binóculo, e enxerguei meu erro. Aquelas protuberâncias arredondadas não eram ornamentos, mas símbolos: expressivos e enigmáticos, impressionantes e perturbadores – alimento para o pensamento e também para os abutres, se houvesse algum olhando para baixo no céu; e, de uma forma ou outra, para as formigas suficientemente capazes de escalar o poste. Teriam sido ainda mais impressionantes, aquelas cabeças em cima das estacas, se suas faces não estivessem voltadas para a casa. Apenas uma, a primeira que eu avistara, estava virada em minha direção. Não fiquei tão chocado quanto possam pensar. O sobressalto para trás que tivera não fora nada além de um movimento causado pela surpresa. Eu esperava ver ali uma bola de madeira, percebem. Retornei deliberadamente à primeira que havia enxergado – e lá estava, negra, seca, encovada, com as pálpebras fechadas -, uma cabeça que parecia dormir no topo de um poste, e com os lábios secos e murchos exibindo uma estreita e branca fileira de dentes, que sorria também, sorria continuadamente para algum infinito e jocoso sonho daquele sono eterno.
“Não estou revelando nenhum segredo comercial. Na realidade, o gerente disse mais tarde que os métodos do Sr. Kurtz haviam arruinado o distrito. Não tenho opinião sobre o assunto, mas quero que vocês entendam bem que não havia nada particularmente proveitoso no fato de aquelas cabeças estarem lá. Mostravam apenas que o Sr. Kurtz não se continha na gratificação de seus vários desejos, que faltava alguma coisa nele – alguma pequena substância que, quando despertada pela necessidade premente, não podia ser encontrada sob sua magnífica eloqüência. Se ele próprio tinha ou não conhecimento dessa deficiência, não sei dizer.

Acho que o conhecimento chegou a ele no fim – somente no momento final. Mas a selva descobrira-o antes, tomando dele uma terrível vingança pela fantástica invasão. Penso que lhe murmurou coisas a respeito dele próprio que ele não sabia, coisas de que ele não tinha idéia até se aconselhar com aquela grande solidão...E o murmúrio mostrou-se irresistivelmente fascinante. Ecoou alto dentro dele porque era oco no âmago...Abaixei o binóculo, e aquela cabeça, que parecera perto o bastante para falar com ela, saltou de repente para longe, a uma distância inatingível.
“...senti-me arrastado com Kurtz como partidário de métodos para os quais o momento não era propício: eu era ineficaz! Ah! Mas já era alguma coisa ter ao menos uma escolha entre pesadelos.”
“Na verdade havia-me voltado para a selva, não para o Sr. Kurtz, que, devo admitir, era como se já estivesse enterrado. E, por um momento, parecia como se eu também já estivesse enterrado numa vasta sepultura repleta de segredos indizíveis. Sentia um peso intolerável oprimindo-me o peito, e o cheiro da terra úmida, da presença invisível e vitoriosa da decomposição, as trevas de uma noite impenetrável...O russo deu-me um tapinha no ombro. Escutei-o murmurando alguma coisa sobre “irmão do mar...não podia esconder...conhecimento de assuntos que afetariam a reputação do Sr. Kurtz”. Esperei. Para ele, evidentemente, o Sr. Kurtz ainda não estava no túmulo. “Bem!”, disse eu afinal, “desembuche. Na verdade, sou amigo do Sr. Kurtz...por assim dizer.”
“Afirmou, com grande formalidade, que, se não fôssemos ‘da mesma profissão’, teria mantido o assunto em segredo sem olhar para conseqüências. “Ele suspeitava que havia muita má vontade contra ele da parte daqueles homens brancos que...” “Você está certo”, disse eu, lembrando uma certa conversa que escutara. “O gerente pensa que você devia ser enforcado”. Demonstrou, então, uma preocupação com esse raciocínio que, a princípio, me divertiu.

“Melhor eu sair do caminho sem fazer alarde”, disse ele honestamente. “Não posso fazer mais nada por Kurtz agora, e eles logo encontrariam alguma desculpa. O que poderia detê-los? Há um posto militar a quinhentos quilômetros daqui.” “Pensando bem”, disse eu, “talvez seja melhor você partir caso tenha amigos entre os selvagens da redondeza.” “Tenho muitos”, disse ele. “São gente simples...e não quero nada, o senhor sabe.”
Ficou parado mordendo o lábio, depois continuou: “Não quero que aconteça nada de mal com os brancos aqui, mas é óbvio que eu estava pensando na reputação do Sr. Kurtz...Mas o senhor é ‘meu irmão do mar e...’” “Tudo bem”, disse eu, após um momento, “a reputação do Sr. Kurtz está a salvo comigo.” Eu não sabia o quanto era verdadeiro o que dizia.
“Parecia achar-se excelentemente bem equipado para um renovado encontro com a selva. “Ah! Jamais, jamais se encontre com um homem desses novamente. O senhor devia tê-lo ouvido recitar poesia...de sua própria autoria, segundo me falou. Poesia! “Girou os olhos, emocionado, com a lembrança desses prazeres. “Oh, ele alargou minha mente!” “Adeus”, disse eu. Apertou-me a mão e desapareceu na noite. Às vezes pergunto-me se realmente o vi...se era possível encontrar-se com tal fenômeno!...
“Quando acordei, pouco depois da meia-noite, sua advertência chegou-me à mente como um sinal de perigo que parecia, na escuridão estrelada, bastante real para me fazer levantar com o propósito de dar uma espiada ao redor. Na colina, ardia uma grande fogueira, iluminando em clarões espasmódicos um canto torto da casa do posto. Um dos agentes vigiava o marfim, acompanhado de alguns dos nossos negros, devidamente armados; mas bem no interior da floresta, brilhos vermelhos tremeluzentes, parecendo afundar e emergir na terra, em meio a indistintas formas colunares intensamente negras, indicavam a posição exata do acampamento onde os adoradores do Sr. Kurtz mantinham apreensiva vigília.

As batidas monótonas de um grande tambor enchiam o ar com surdas pancadas e prolongadas ressonâncias. O zumbido constante de muitos homens entoando cada um para si próprio alguma estranha e mágica cantilena surgia da negra e plana muralha de árvores como o zunido de abelhas saindo da colméia, produzindo um estranho efeito narcótico sobre meus sentidos semidespertos. Acho que cochilei apoiado na amurada, até que uma abrupta explosão de gritos, uma impressionante erupção de enclausurado e misterioso frenesi, acordou-me de um modo desnorteante. O ruído cessou de repente, e o baixo zumbido continuou como efeito de um silêncio audível e tranqüilizante. Olhei por acaso para dentro da pequena cabine. Uma luz ardia ali, mas o Sr. Kurtz não estava lá.
“Acho que teria soltado um grito se houvesse acreditado no que via. Mas, a princípio, não acreditei – a coisa parecia impossível. O fato é que eu estava completamente amedrontado, simplesmente pálido de medo, um temor puramente abstrato, sem ligação com qualquer forma definida de perigo físico. O que tornava essa emoção tão sobrepujante era – como posso defini-la? – o choque moral que recebera, como se algo totalmente monstruoso, intolerável para o pensamento e odioso para a alma, me houvesse sido confiado de forma inesperada. Isso durou, é claro, apenas uma fração de segundo; imediatamente, a sensação usual de grave perigo iminente, como a possibilidade de um súbito assalto, massacre ou coisa parecida, foi muito bem-vinda e reconfortante. De fato, tranqüilizou-me, tanto que não disparei o alarme.
“Um agente todo abotoado num casaco pesado, dormia numa cadeira no convés a um metro de mim. Os gritos não o haviam acordado; roncava muito levemente; deixei-o, portanto, cochilar e saltei à terra. Não traí o Sr. Kurtz – estava determinado que nunca deveria traí-lo - , estava escrito que devia ser leal ao pesadelo que escolhera. Sentia-me ansioso para lidar sozinho com aquela sombra...e até hoje não sei por que tinha tanto ciúme de compartilhar com alguém a escuridão peculiar daquela experiência.
“Assim que alcancei a margem, vi uma trilha – uma ampla trilha no meio da mata. Recordo a exaltação com que disse a mim próprio: “Não pode andar...está rastejando de quatro...apanhei o sujeito”.

O mato estava molhado de orvalho. Eu caminhava rapidamente com os punhos cerrados. Acho que minha intenção era cair sobre ele e dar-lhe uma surra. Não sei. Estavam-me ocorrendo idéias bastante idiotas. A velha que tricotava com o gato no colo intrometia-se em minhas lembranças como a pessoa mais inadequada para sentar na outra extremidade de um caso daqueles. Vi uma fileira de peregrinos despejando chumbo no ar com as Winchesters apoiadas nos quadris. Pensei que jamais voltaria para o vapor, e imaginei-me morando sozinho e desarmado na selva até uma idade avançada. Esse tipo de tolice – vocês sabem. Recordo também que confundia as batidas dos tambores com meu batimento cardíaco, e que fiquei satisfeito com sua calma regularidade.

“Mas continuei na trilha, parando de vez em quando para escutar. A noite estava muito límpida – um espaço azul-escuro, brilhando no orvalho e na luz das estrelas, onde as coisas negras permaneciam bastante quietas. Julguei perceber um movimento a minha frente. Eu estava estranhamente seguro de tudo aquela noite. Cheguei a sair da trilha para correr em amplo semicírculo (acredito muito que rindo comigo mesmo), a fim de sair na frente daquele tumulto, daquela agitação que havia enxergado – se é que realmente enxergara algo. Estava circundando Kurtz, como se fosse uma brincadeira de criança.

“Nós nos encontramos de repente, e teria tropeçado nele se não me houvesse escutado chegando, mas acordou a tempo. Levantou-se, inseguro – um vulto comprido, pálido, indistinto, como um vapor exalado pela terra, oscilando levemente, nebuloso e calado à minha frente; às minhas costas, as fogueiras reluziam entre as árvores, e o murmúrio de muitas vozes saía da floresta. Eu o havia interceptado com astúcia; mas, ao defrontar-me com ele, pareci ter recobrado os sentidos, pois enxerguei o perigo nas devidas proporções, o qual não estava de modo algum acabado.
Imaginem se ele começasse a gritar? Apesar de mal poder ficar em pé, ainda havia muito vigor em sua voz. “Vá embora...esconda-se”, disse ele, naquele tom profundo. Impressionou bastante.

Olhei para trás. Estávamos a trinta metros da fogueira mais próxima. Um vulto negro levantou-se e avançou com longas e negras pernadas, acenando com longos e negros braços através da escuridão. Tinha chifres – acho que de antílope – na cabeça. Sem dúvida, algum bruxo ou feiticeiro, de aspecto bastante demoníaco. “O senhor sabe o que está fazendo?”, sussurrei. “Perfeitamente”, respondeu, elevando a voz para pronunciar essa única palavra; soou muito distante e ao mesmo tempo alta, como uma saudação num alto-falante. “Se resolver incomodar, estamos perdidos”, pensei comigo. Claramente, não era caso para troca de socos, mesmo colocando de lado a própria aversão natural que eu sentia em bater naquela sombra...naquela coisa errante e atormentada. “O senhor estará perdido”, disse eu, “completamente perdido”. Temos, às vezes, tais lampejos de inspiração, vocês sabem. O fato é que eu disse a coisa certa, embora, na verdade, ele não pudesse estar mais irrecuperavelmente perdido do que estava naquele exato momento, quando os fundamentos de nossa intimidade estavam sendo postos...para durar...durar...até o final...até muito além do final.
“Eu não queria ter de enforcá-lo, compreendem...e, realmente, do ponto de vista prático, isso seria de muito pouca utilidade. Tentei quebrar o encanto – a pesada e muda maldição da selva – que parecia arrastá-lo para seu impiedoso seio, ao despertar esquecidos e brutais instintos, pela lembrança de gratificantes e monstruosas paixões. Eu estava certo de que unicamente isso o havia arrastado para a borda da floresta, através da mata, em direção ao brilho das fogueiras, ao bater dos tambores, rumor de estranhos encantamentos; unicamente isso havia atraído sua alma desregrada para além dos limites das aspirações permitidas. Vejam bem, o horror da minha situação não consistia no risco que corria de levar uma cacetada na cabeça – embora eu tivesse plena consciência desse perigo também - , mas no fato de que eu tinha de lidar com um ser para quem era inútil invocar o nome do que quer que fosse, nem do que era elevado, nem do que era baixo. Seria preciso, como faziam os negros, invocar – a ele próprio – sua própria exaltada e incrível degradação. Não havia nada acima ou abaixo dele, e eu sabia disso. Desprendera-se da Terra a pontapés.

Diabo de homem! Chutara a própria Terra, desfazendo-a em pedaços. Agora ele estava só, e, diante dele, eu não sabia se permanecia no chão ou flutuava no ar. Tenho narrado a vocês o que falamos...repetindo as frases que pronunciamos...mas para quê? Eram palavras comuns, corriqueiras – os sons vagos e familiares que emitimos ao despertar de cada manhã. Mas e daí? É que para mim elas continham também a fabulosa sugestividade de palavras ouvidas em sonhos, de frases faladas em pesadelos.

Alma! Se alguém alguma vez lutou com uma alma, esse alguém sou eu. E não pensem que eu estava argumentando com um louco. Acreditem ou não, sua mente encontrava-se perfeitamente lúcida...se bem que concentrada nele próprio com tremenda intensidade, e ali estava minha única oportunidade...a não ser, é claro, que o matasse, o que não seria muito aconselhável, pois faria um barulho inevitável. Mas sua alma havia enlouquecido. Estando sozinha na selva, havia olhado para dentro de si e, por Deus, não tenho dúvida de que enlouquecera. Eu tinha – por causa dos meus pecados, imagino – de passar pela provação de olhar para dentro dela também. Nenhuma eloqüência poderia ter sido tão devastadora à nossa crença na humanidade como sua explosão final de sinceridade Lutava com ele próprio também.

Presenciei isso tudo, vendo-o...ouvindo-o. Vi o mistério inconcebível de uma alma que não conhecia limite, nem fé, nem medo, embora lutasse cegamente contra si própria. Fui capaz de manter a cabeça em ordem; mas, quando afinal consegui estendê-lo sobre o sofá, enxuguei a minha testa, tremendo as pernas como se houvesse carregado meia tonelada nas costas aquele morro abaixo. E, no entanto, o havia apenas apoiado, enganchando seus braços ossudos em volta do meu pescoço...pois não pesava mais que uma criança.

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“Quando partimos no dia seguinte, ao meia-dia, a multidão, de cuja presença atrás da cortina de árvores eu tivera viva consciência durante todo o tempo, fluiu para fora da mata novamente, inundando a clareira e cobrindo a encosta do morro de corpos brônzeos e nus, trêmulos, ofegantes. Naveguei um pouco rio acima, depois dei meia-volta e desci seguindo a correnteza; dois mil olhos acompanhavam as evoluções do demônio do rio, espargindo água ferozmente com seu rabo terrível e expelindo fumaça negra no ar.
À beira-rio, enfileirados na frente, 3 homens, cobertos de barro vermelho-vivo da cabeça aos pés, pavoneavam-se de um lado para outro incansavelmente. Quando nos aproximamos deles outra vez, voltaram-se para nós, batendo os pés, balançando as cabeças ornadas de chifres e oscilando os corpos escarlates; depois agitaram em direção do feroz demônio do rio um punhado de penas pretas e uma pele sarnenta com um rabo dependurado...algo parecido a uma cabaça seca; gritavam em coro, periodicamente, fileiras de palavras estranhas em nada semelhantes aos sons de uma linguagem humana; e os profundos murmúrios da multidão, subitamente interrompidos, pareciam respostas a alguma litania satânica.
“Carregáramos Kurtz para a cabine do piloto: havia mais ar ali. Deitado no sofá, ele olhava pra fora através da janela. Havia um torvelinho em meio à massa de corpos humanos, e a mulher com a cabeça em forma de elmo e faces coradas apressou-se em direção à beira do rio. Estendeu as mãos, gritando alguma coisa, e toda aquela selvagem multidão gritou também num coro atroador de expressões articuladas, rápidas e esbaforidas.
“O senhor entende isso?”, perguntei.
“Continuou olhando para fora com olhos faiscantes, nostálgicos, com uma expressão mista de melancolia e ódio. Não deu nenhuma resposta, mas percebi que um sorriso de significado indefinível apareceu em seus lábios sem cor, que um instante depois se torceram convulsivamente. “E não é para entender?”, disse ele devagar, ofegante, como se as palavras lhe houvessem sido arrancadas por um poder sobrenatural.
“O rio pardo corria rapidamente para fora do coração das trevas, levando-nos em direção ao mar com o dobro da velocidade de nosso progresso rio acima; e a vida de Kurtz corria rapidamente também, fluindo do seu coração para o mar de tempo inexorável.

“Bétail sacré du Ruanda”, fotografia da Série 1 de 'Afrique qui Disparaît",
realizada em 1930 por Casimir Zagourski


Os peregrinos olhavam-me com antipatia. Eu era, por assim dizer, contado entre os mortos. É estranho como eu aceitara essa estranha parceria, como essa escolha de pesadelos forçara-me para dentro de uma terra tenebrosa invadida por vis e gananciosos fantasmas.
“Kurtz discursava. A voz! A voz! Ressoou profunda até o final. Sobrevivera às suas forças para ocultar nas magníficas dobras da eloqüência as áridas trevas do seu coração. Oh, ele lutou! Lutou! Os restos de seu cérebro cansado eram agora assombrados por imagens sombrias – imagens de riqueza e fama revolvendo obsequiosamente em torno de seu inextinguível dom de nobre e elevada expressão. Minha Prometida, meu posto, minha carreira, minhas idéias – esses eram os objetos de suas ocasionais expressões de elevados sentimentos. A sombra do Kurtz original freqüentava o criado-mudo dessa imitação vazia, cujo destino era ser realmente enterrado no barro da terra primordial. Mas tanto o amor diabólico como o ódio sobrenatural dos mistérios que havia penetrado lutavam pela posse daquela alma saciada de primitivas emoções, ávida de falsa fama, de enganosa distinção, de todas as aparências de sucesso e poder.
“Às vezes era desprezivelmente infantil. Desejava que reis fossem encontrá-lo em estações ferroviárias quando retornava de alguma terrível e ignota região, onde pretendia realizar grandes coisas. ‘Se mostrarmos a eles que possuímos algo realmente proveitoso, o reconhecimento de nossa capacidade será ilimitado’, dizia ele. ‘É claro que é preciso ter em vista os motivos...os motivos certos...sempre.’ Os longos trechos do rio pareciam sempre o mesmo é único remanso, bem como as monótonas curvas que passavam pelo vapor com sua profusão de árvores seculares olhando pacientemente para esse pálido fragmento de outro mundo, precursor da mudança, da conquista, do comércio, de massacres, de bênçãos. Eu olhava para a frente...pilotando. ‘Feche a janela’, disse Kurtz de repente um dia; ‘Não suporto ficar olhando para isso.’ Fechei a janela. Fez-se um silêncio. ‘Ah, mas ainda arrebendo com seu coração!”, gritou para a selva invisível.
“Enguiçamos – como eu já esperava -, e tive de parar para reparos na ponta de uma ilha. Esse atraso foi a primeira coisa que abalou a confiança de Kurtz. Certa manhã, entregou-me um pacote de papéis e uma fotografia – tudo amarrado junto com um cadarço de sapato. ‘Guarde isso para mim’, disse ele. ‘Aquele canalha (referindo-se ao gerente) é bem capaz de vir bisbilhotar em minhas caixas quando eu não estiver olhando.’

“Mangbetu Déformation du crâne“, fotografia da Série 1 de 'Afrique qui Disparaît", realizada em 1930 por Casimir Zagourski

À tarde fui vê-lo. Estava deitado de bruços com os olhos fechados, e já me retirava silenciosamente, quando o escutei murmurar: ‘Viver corretamente e morrer, morrer...’ Fiquei à escuta. Não houve mais nada. Estava ensaiando algum discurso enquanto dormia, ou era isso um fragmento de uma frase de algum artigo de jornal? Andou escrevendo para jornais e pretendia fazê-lo de novo, ‘para a propagação de minhas idéias. É um dever.’
“Sua escuridão era impenetrável. Olhava para ele como olharia para alguém que se encontra no fundo de um precipício onde o sol nunca brilha. Mas eu não dispunha de muito tempo para ele, porque estava ajudando o maquinista a desmontar os cilindros com vazamentos, para endireitar uma biela de conexão e outras coisas semelhantes. Vivia numa confusão infernal de ferrugem, limalha, porcas, parafusos, chaves de porca, martelos, furadeiras – coisas que abominava, porque não me dou bem com elas. Cuidava da pequena forja que felizmente tínhamos a bordo; penava exausto sobre o desgraçado monte de ferro-velho – a não ser quando as pernas tremiam demais para ficar de pé.
“Certa noite, ao entrar na cabine com uma vela, fiquei estarrecido ao ouvi-lo dizer um pouco trêmulo: ‘Estou deitado aqui no escuro esperando a morte chegar’. A luz estava a um palmo dos seus olhos. Fui forçado a murmurar: ‘Oh, que bobagem!’, e fiquei ali junto a ele, como que paralisado.
“Jamais vira antes algo semelhante à mudança que ocorrera em sua fisionomia, e espero não tornar a ver. Oh, não que tivesse ficado emocionado. Fiquei estarrecido. Foi como se um véu houvesse sido rompido. Enxerguei naquele roso de marfim uma expressão de orgulho sombrio, de poder implacável, de terror covarde – de intenso e irremediável desespero. Estaria ele revivendo sua vida, em todos os detalhes, com seus desejos, tentações e entregas, naquele supremo momento de total conhecimento? Gritou, então, num sussurro, para alguma imagem, alguma visão – gritou duas vezes, um grito que não era mais do que um sopro:
‘O horror! O horror!’

“Apaguei a vela e saí da cabine. Os peregrinos estavam jantando na sala de refeições, e tomei meu lugar diante do gerente, que levantou os olhos com um olhar questionador. Fingi ignorá-lo. Recostou-se, então, sereno, com aquele seu sorriso peculiar, selando as profundezas veladas de sua mesquinhez. Uma chuva contínua de pequenas moscas voava sobre a lâmpada, sobre a toalha de mesa, sobre nossas mãos e nossos rostos. De repente, o garoto do gerente pôs sua cabeça negra na entrada da porta e disse num tom de sarcástico desprezo:
‘O Sr. Kurtz...ele morreu’.
“Todos os peregrinos saíram correndo para ver. Eu fiquei e continuei com meu jantar. Acho que fui considerado tremendamente insensível. Mas não comi muito. Havia uma lâmpada ali...uma luz, compreendem?...e lá fora aquela escuridão terrível. Não tornei a me aproximar do homem notável que havia feito um julgamento sobre as aventuras de sua alma neste mundo. A voz se fora. Que mais havia ali? Mas sei, é claro, que no dia seguinte os peregrinos enterraram algo num buraco lamacento.
“E depois estiveram muito perto de enterrar-me também.
“No entanto, como podem ver, não fui juntar-me ao Sr. Kurtz. Não fui mesmo. Fiquei para sonhar o pesadelo até o fim e mostrar minha lealdade a ele uma vez mais. Destino. Meu destino! Coisa engraçada é a vida – misterioso arranjo de lógica implacável para um propósito fútil. O máximo que você pode esperar dela é algum conhecimento de si próprio...que chega tarde demais...uma colheita de inesgotáveis arrependimentos. Eu havia lutado com a morte. É o combate mais desinteressante que se pode imaginar. Acontece numa impalpável zona cinzenta, com nada sob os pés, nada ao redor, sem espectadores, sem clamor, sem glória, sem o grande desejo de vitória, sem o grande medo da derrota, numa atmosfera doentia de tépido ceticismo, sem muita fé em nossos próprios direitos, e menos ainda nos do seu adversário. Se tal é a forma da última e definitiva sabedoria, então a vida é um quebra-cabeça maior do que alguns de nós supõem que seja.

Eu estava a milímetros da minha última oportunidade para fazer um pronunciamento, e descobri, com humilhação, que provavelmente não teria nada para dizer. Essa é a razão pela qual afirmo que Kurtz foi um homem notável. Ele tinha algo a dizer. E disse. Como eu próprio estive à beira do abismo, compreendi melhor o significado daquele seu olhar, que não podia ver a chama da vela, mas era amplo o suficiente para abraçar o universo inteiro, pungente o bastante para penetrar todos os corações que batem na escuridão. Ele havia resumido – num juízo. ‘O horror’

Era um homem notável. Depois de tudo, isso era expressão de algum tipo de crença; havia candura, havia convicção, havia uma vibrante nota de revolta nesse sussurro, havia a espantosa face de uma verdade vislumbrada – estranha mescla de desejo e ódio. E não é de minhas próprias e extremas aflições que me recordo melhor – uma visão cinzenta, sem forma, repleta de dor física e de um desprezo indiferente pela evanescência de todas as coisas...inclusive da própria dor. Não! São as aflições dele que tenho a impressão de ter vividol Ele realmente deu aquele último passo, transpôs a borda do abismo, enquanto a mim foi permitido recuar o pé hesitando. E talvez aí esteja toda diferença; talvez toda sabedoria, toda verdade e toda sinceridade estejam apenas contidas naquele inapreciável momento em que ultrapassamos o limiar do invisível.

Talvez! Gosto de pensar que minha recapitulação final não teria sido uma palavra de indiferente desprezo. Melhor o seu grito...muito melhor.
Foi uma afirmação, uma vitória moral paga por inúmeras derrotas, por abomináveis terrores, por abomináveis prazeres. Mas foi uma vitória! Foi por isso que permaneci leal a Kurtz até o fim, e mesmo depois, quando, após muito tempo, ouvi uma vez mais, não sua própria voz, mas o eco de sua magnífica eloqüência lançada a mim por uma alma de pureza tão translúcida como um rochedo de cristal.

“Não, não me enterraram, embora tenha havido um período que recordo vagamente, com espanto e horror, como uma passagem por um mundo inconcebível, onde não havia nem esperança nem desejo. Achei-me de volta à cidade sepulcral, ressentindo a visão de pessoas com pressa nas ruas para roubar um pouco de dinheiro umas das outras, devorar sua infam cozinha, engolir sua cerveja insalubre, sonhar seus sonhos insignificantes e tolos. Atropelaram meus pensamentos. Eram intrusos cujo conhecimento da vida era para mim uma pretensão irritante, porque me sentia bastante seguro de que não tinham condições de saber as coisas que eu sabia. Suas maneiras, que eram simplesmente as maneiras de indivíduos comuns lidando com seus negócios na certeza da perfeita segurança, eram ofensivas para mim como a escandalosa empáfia dos tolos diante de um perigo que são incapazes de compreender. Não tinha nenhum desejo especial de iluminá-los, mas tinha alguma dificuldade em abster-me de rir nas suas caras tão cheias de estúpida importância. Acho que não me sentia muito bem nessa época. Perambulava pelas ruas – havia muitos assuntos para acertar – arreganhando amargamente os dentes para pessoas perfeitamente respeitáveis. Admito que meu comportamento era inescusável, mas minha temperatura naqueles dias raramente se mantinha normal. Os esforços de minha querida tia para ‘revigorar minhas forças’ pareciam no todo fora de propósito. Não eram minhas forças que precisavam ser revigoradas, era minha imaginação que precisava de cuidados.
“Guardava comigo o pacote de papéis entregue por Kurtz, não sabendo exatamente o que fazer com ele. Sua mãe morrera recentemente, sendo velada, como soubera, por sua Prometida (noiva). Um homem limpo e barbeado, jeito de oficial e usando óculos de aro dourado, visitou-me um dia e fez perguntas, de início indiretas, depois pressionando de leve sobre o que lhe agradava denominar certos ‘documentos’. Não fiquei surpreso, porque já havia tido duas brigas com o gerente sobre o assunto quando me encontrava na selva. Eu me recusara a entregar o mínimo fragmento daquele pacote, e tomei a mesma atitude com o homem de óculos. Mostrou-se por fim sinistramente ameaçador, argumentando com veemência que a Companhia tinha o direito à mais ínfima informação sobre seus ‘territórios’.

Declarou que ‘o conhecimento do Sr. Kurtz sobre regiões inexploradas devia ser necessariamente extenso e específico...em razão de suas grandes habilidade e das condições deploráveis em que fora colocado; portanto...’
Assegurei-lhe que o conhecimento do Sr. Kurtz, embora extenso, não se dirigia a problemas de comércio e administração. Invocou, então, o nome da ciência. ‘Seria uma incalculável perda se’ etc etc.

Ofereci a ele o relatório sobre ‘A Supressão dos Costumes Bárbaros’, com o post scriptum arrancado. Apanhou-o avidamente, mas terminou torcendo o nariz para o texto com um ar de desprezo. ‘Não é isso o que tínhamos direito de esperar’, ressaltou. ‘Não espere mais nada’, disse eu. ‘Há somente cartas particulares.’ Retirou-se com ameaças de processar-me legalmente, e não o vi mais; mas outro sujeito, dizendo-se primo de Kurtz, apareceu dois dias depois, e estava ansioso para ouvir todos os detalhes sobre os últimos momentos de seu querido parente. Incidentalmente, deu-me a entender que Kurtz fora, acima de tudo, um grande músico. ‘Tinha estrutura para imenso sucesso’, disse o homem, que era organista, imagino, com os cabelos grisalhos e escorridos caindo sobre um casaco de colarinho engordurado. Não havia razão para duvidar de sua afirmação; e até hoje sou incapaz de dizer qual era a profissão de Kurtz, se algum dia teve uma – e qual era o maior de seus talentos. Pensava que fosse um pintor que escrevia para jornais, ou um jornalista que pintava – mas mesmo o primo (que cheirou rapé durante a entrevista) não sabia dizer exatamente o que ele havia sido. Era um gênio universal – nesse ponto concordei com o velho, que, então, assoou o nariz ruidosamente num grande lenço de algodão, retirando-se numa agitação senil, levando algumas cartas familiares e memorandos sem importância.

Por fim, apareceu um jornalista ansioso para saber alguma coisa sobre o destino de seu ‘querido colega’.

Esse visitante informou-me que a esfera própria de Kurtz de ter sido a política ‘no lado popular’. Tinha sobrancelhas retas e peludas, cabelo curto eriçado, um monóculo amarrado num longo cordão; tornando-se expansivo, confessou-me que Kurtz realmente não podia escrever o mínimo que fosse...’Mas por Deus! Como aquele homem falava. Eletrizava grandes platéias. Tinha fé...o senhor compreende...tinha fé no que dizia. Podia fazer você acreditar em qualquer coisa...absolutamente qualquer coisa. Teria sido um esplêndido líder de um partido radical.’ ‘Que partido?’, perguntei. ‘Qualquer partido’, respondeu o outro. ‘Ele era um...um extremista.’
Eu também não pensava assim? Consenti. ‘Sabia’, perguntou, com um súbito relance de curiosidade, ‘o que o havia induzido a ir para lá?’ ‘Sim’, respondi, e ato contínuo entreguei-lhe o famoso Relatório para publicação, se achasse adequado. Passou os olhos no texto apressadamente, resmungando o tempo todo, julgou ‘que dava para publicar’, e partiu com esse butim (Butim=despojo do inimigo de que o vencedor se apropria; produto de um saque, de um roubo.)
Assim, fiquei afinal com um magro pacote de cartas e o retrato da moça (a noiva). Surpreendeu-me pela beleza...quer dizer, tinha uma bela expressão. Sei que é possível manipular a luminosidade, mas sentia-se que nenhum artifício de luz ou ângulo poderia ter transmitido tão delicados matizes de veracida àquelas feições. Ela parecia predisposta a ouvir, sem reserva mental, sem desconfiança, sem pensar em si própria. Decidi que iria devolver-lhe em pessoa o retrato e aquelas cartas. Curiosidade? Sim...e um outro sentimento, talvez. Tudo que havia sido de Kurtz passara pelas minhas mãos, escapulindo: sua alma, seu corpo, seu posto, seus planos, seu marfim, sua carreira. Restavam apenas sua memória e sua Prometida...e eu queria desistir disso, também, entregando tudo ao passado...relegando, de certa forma, tudo que restara dele comigo ao esquecimento, última palavra de nosso destino comum. Não estou me defendendo. Eu não tinha clara percepção do que realmente desejava. Talvez fosse um impulso de inconsciente lealdade, ou o preenchimento de uma dessas irônicas necessidades que ocultam os fatos da existência humana Não sei. Não tenho condições de dizer. Mas fui vê-la.

"Eu pensava que a lembrança dele era como a lembrança de todos os outros mortos que se acumulam na vida de um homem – uma vaga impressão deixada no cérebro por sombras que ali caíram em sua rápida e última passagem. Diante, porém, da pesada e imponente porta, em meio às altas casas de uma rua tão calma e decorosa quanto uma bem-cuidada alameda de um cemitério, veio-me à mente a imagem dele na padiola, abrindo a boca vorazmente, como se fosse devorar a Terra inteira com toda a humanidade. Tornou, então, a viver diante de mim, exatamente como sempre vivera – uma sombra que jamais se saciara das grandiosas aparências ou das terríveis realidades; uma sombra mais negra que a sombra da noite, nobremente envolta nas dobras de magnífica eloqüência. A visão parecia entrar na casa comigo - a padiola, os carregadores-fantasmas, a selvagem multidão de obedientes adoradores, a escuridão das florestas, o brilho do remanso entre curvas tenebrosas, o bater do tambor, regular e abafado, como as batidas de um coração...o coração das trevas avassaladoras. Foi um momento de triunfo para a selva, uma invasora e vingativa investida, que – assim me pareceu – eu teria de repelir sozinho, para a salvação de uma outra alma. E a lembrança de que ouvira Kurtz dizer lá longe, com os vultos ornados, de chifres agitando-se às minhas costas, no clarão das fogueiras, em meio à mata paciente – aquelas frases fragmentadas voltaram-me à mente, fazendo-se ouvir uma vez mais em sua sinistra e aterrorizante simplicidade. Lembrei-me de suas abjetas súplicas, de suas abjetas ameaças, da escala colossal de seus vis desejos, da mesquinhez, do tormento, da tempestuosa angústia de sua alma. E, mais tarde, pareceu-me ver o lado comedido, acomodado, de seu temperamento, quando me disse certo dia: ‘Esse lote de marfim agora é realmente meu. A Companhia não pagou por ele. Eu o consegui com grande risco pessoal. Receio, no entanto, que tentarão reclamá-lo como seu. Hum! É um caso difícil. O que o senhor acha que devo fazer...resistir? Heim? Não quero nada mais que justiça.”
“Toquei a campainha diante da porta de mogno, e enquanto esperava, pareceu-me que ele me olhava do painel envernizado...com aquele amplo e imenso olhar, abraçando, condenando, abominando todo universo. Pareceu-me ouvir seu grito sussurrado: ‘O horror! O horror!’

“Anoitecia. Uma porta alta se abriu...e tornou a fechar. Levantei-me.
“Caminhou em minha direção, toda de preto, com a cabeça pálida, como se flutuasse na escuridão. Estava de luto. Passara mais de um ano desde a morte dele, mais de um ano desde que as notícias haviam chegado; parecia que ia lembrar e manter o luto para sempre. Tomou-me ambas as mãos nas suas e murmurou: ‘Disseram-me que o senhor viria.’ Percebi que não era muito jovem...quer dizer, que não era mais uma menina. Tinha maturidade para ser fiel, para confiar e para suportar o sofrimento. A sala pareceu ter ficado mais escura, como se a triste claridade daquele sombrio crepúsculo se houvesse refugiado em sua fronte.
“Seu olhar era sincero, profundo, seguro e verdadeiro. Carregava a cabeça pesarosa como se tivesse orgulho daquele pesar, como se dissesse: ‘Eu...somente eu sei pranteá-lo como ele merece.’ Mas, enquanto ainda apertávamos as mãos, surgiu em seu rosto uma expressão de terrível desolação, e percebi que ela era uma dessas criaturas que não são joguetes do Tempo. Para ela, ele havia morrido no dia anterior. E, por Deus, a impressão que ela me deu foi tão forte que também me pareceu que ele morrera na véspera – ou melhor -, naquele exato minuto. Enxerguei a ambos no mesmo lapso de tempo – a morte dele e a tristeza dela -, enxerguei a tristeza dela no exato momento da morte dele. Compreendem? Enxerguei os dois juntos – escutei os dois juntos. Ela dissera, prendendo a respiração: ‘Eu sobrevivi’, enquanto meus ouvidos aguçados pareciam ouvir distintamente, misturado a seu tom de desesperado pesar, o sussurro que resumia a eterna condenação dele. Perguntei-me o que estava fazendo ali, com uma sensação de pânico no coração, como se houvesse topado com um lugar de cruéis e absurdos mistérios, inadequados para um ser humano contemplar. Indicou-me uma cadeira. Nós dois nos sentamos. Coloquei o pacote gentilmente em uma mesinha, e ela pousou a mão sobre ele...’O senhor o conhecia bem’, murmurou, após um momento de pesaroso silêncio.
“As amizades crescem rapidamente lá fora”, disse eu. “Conhecia-o tão bem quanto é possível a um homem conh“’O senhor era amigo dele’, continuou. ‘Amigo dele’, repetiu, um pouco mais alto. ‘Deve ter sido, se ele lhe entregou isso, enviando-o a mim. Sinto que posso falar com o senhor...e oh! Deve ter sido, se ele lhe entregou isso, enviando-o a mim. Sinto que posso falar com o senhor...e oh! Devo falar. Quero que o senhor – que ouviu suas últimas palavras – saiba que fui merecedora dele...Não se trata de orgulho...Sim! Sou orgulhosa de conhecê-lo e compreendê-lo melhor que ninguém no mundo – ele próprio me disse isso. E, desde que sua mãe morreu, não tive ninguém...ninguém...para...para...”
ecer outro.”

“Eu escutava. A escuridão adensava-se. Não estavam nem mesmo certo se ele me havia dado o pacote certo. Suspeito inclusive que ele queria que eu cuidasse de outro maço de papéis, o qual, após sua morte, eu enxergara o gerente examinando sob uma lâmpada. E a moça falava, aliviando sua dor na certeza da minha simpatia; falava como pessoas sedentas saciando a sede. Eu ouvira dizer que o noivado com Kurtz não havia tido aprovação pela família dela. Ele não era rico o suficiente ou algo parecido. E realmente não sei se não foi pobre durante a vida inteira. Dera-me alguma razão para entender que fora a insatisfação com suas poucas posses que o conduzira lá para fora.
“’...Quem não se tornaria amigo dele ao ouvi-lo falar, ainda que fosse uma só vez?’, dizia ela. ‘Atraía as pessoas em direção a ele com o que havia de melhor nelas’. Olhava para mim com intensidade. ‘Esse é o dom dos grandes homens’, continuou, e o som de sua voz baixa parecia ser acompanhado de todos os outros sons que eu já conhecia, cheios de mistério, desolação e pesar – o murmúrio do rio, o farfalhar das árvores agitadas pelo vento, os sussurros da multidão, o som desmaiado de palavras incompreensíveis gritadas ao longe, o rumor de uma voz falando além do limiar de eterna treva. ‘Mas o senhor escutou-o! O senhor sabe!’, gritou.
“’Sim, eu sei’, respondi, com um certo desespero no coração, mas me curvando diante da fé que havia nela, diante daquela grande e salvadora ilusão que reluzia com um brilho sobrenatural na escuridão, na triunfante escuridão da qual eu não poderia defendê-la...da qual eu não poderia nem mesmo defender a mim próprio.
“’Lembraremos dele para sempre’, falei imediatamente.
“’Não’, gritou ela. ‘Não é possível que tudo isso se perca – que uma tal vida seja condenada a não deixar nada...além de tristeza. O senhor sabe como eram vastos os planos que ele tinha. Eu sabia da existência deles, também...podia talvez não entendê-los...mas outros entendiam. Algo deve permanecer. Suas palavras, ao menos, não morreram.’
“’Suas palavras permanecerão’, disse eu.
“’E seu exemplo’, murmurou para si própria. ‘As pessoas olhavam para ele...sua bondade brilhava em qualquer ato. Seu exemplo...’
“’É verdade’, disse eu; ‘seu exemplo, também. Sim, seu exemplo. Eu havia esquecido isso.’
‘’Mas eu não. Não...não posso acreditar...ainda não. Não posso acreditar que jamais voltarei a vê-lo, que ninguém o verá novamente, jamais, jamais, jamais.’

“Estendeu os braços, como se fosse na direção de um vulto que se afastava, recolhendo-os em seguida, com as pálidas mãos crispadas, contra a estreita e esmaecida luminosidade da janela. Nunca mais tornar a vê-lo! Pois eu o via, naquele momento, com suficiente clareza. Verei esse eloqüente fantasma enquanto eu viver, e verei também a ela, uma Sombra trágica e familiar, lembrando com esse gesto uma outra, trágica também, enfeitada de amuletos inúteis, estendendo os braços morenos e nus sobre o brilho do rio infernal, o rio das trevas. Então disse ela subitamente muito baixo: ‘Morreu como viveu’.
“’Seu fim’, disse eu, com uma raiva surda vibrando dentro de mim, ‘foi em todos os sentidos digno de sua vida.’
“’E eu não estava com ele’, murmurou. Minha raiva desvaneceu diante de um sentimento de infinita piedade.
“’Tudo que podia ser feito...’, acrescentei em voz baixa.
“’Ah, mas eu acreditava nele mais do que qualquer pessoa no mundo...mais do que sua própria mãe, mais do que...ele próprio. Ele precisava de mim! De mim! Eu teria guardado cada suspiro, cada palavra, cada gesto, cada olhar.’
“Senti de repente uma fria dor no peito, ‘Pare’, disse eu, com a voz abafada.
‘’Perdoe-me, eu...eu o tenho pranteado tanto tempo em silêncio...em silêncio...O senhor esteve com ele...até o fim? Penso na solidão dele. Ninguém perto para compreendê-lo como eu o compreendi. Talvez ninguém para ouvi-lo...’
“’Fiquei até o final’, disse eu, trêmulo. ‘Ouvi suas últimas palavras...’ Calei-me aterrorizado.
“’Repita-as’, murmurou ela, num tom de partir o coração. ‘Eu quero...eu quero...algo...algo...para...para...poder seguir vivendo.’
“ Estive a ponto de gritar para ela: ‘A senhora não está ouvindo?’ A penumbra estava repetindo-as num persistente sussurro a nossa volta, um sussurro que parecia se intensificar ameaçadoramente, como o primeiro sussurro de um vento que cresce. ‘O horror! O horror!’
“’Suas últimas palavras...para guardar para sempre’, insistiu. ‘Não percebe que eu o amava...eu o amava...eu o amava!’

“Mother Earth fucks death up the ass”, arte de Dan Ouellette

“Recompus-me e falei lentamente:
‘A última palavra que pronunciou foi...seu nome.’
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“Ouvi um leve suspiro, e depois meu coração parou, como que imobilizado por um exultante e terrível grito, um grito de inconcebível triunfo e indizível dor. ‘Eu sabia...eu tinha certeza!...’ Ela sabia. Ela tinha certeza. Escutei-a chorando; havia escondido o rosto com as mãos. Pareceu-me que a casa ia desmoronar antes que eu pudesse escapar, que os céus cairiam sobre minha cabeça. Mas nada aconteceu. Os céus não caem por uma tal ninharia. Teriam caído, quem sabe, se eu houvesse feito a Kurtz a justiça que lhe era devida? Não havia dito que queria apenas justiça? Mas não pude. Não pude dizer a ela. Teria sido algo muito tenebroso...demasiadamente tenebroso, afinal...”

Após todas essas narrativas e recordações, Marlow calou-se e continuou sentado ali, um tanto afastado, indistinto e silencioso, como um Buda em meditação. Ninguém se moveu por algum tempo. O alto-mar estava bloqueado por uma massa de nuvens negras, e o calmo curso d’água que levava aos extremos confins da Terra fluía sombrio sob um céu encoberto...parecendo dirigir-se ao coração de imensas trevas.

“O coração das trevas” – Joseph Conrad
Série L&PM pocket
Pp 70 a 77, 112 a 125, 134 a 167


Foto de 1904

“Teodor Joseph Conrad Korzeniowski nasceu em Berdichev, Polônia, a 3 de dezembro de 1857
e morreu em Bishopsbourne, Inglaterra, em 3 de agosto de 1924. Aprendeu inglês aos 23 anos e foi nesta língua que escreveu uma obra considerada unanimente como uma das mais importantes da literatura inglesa em todos os tempos. Foi marinheiro durante 16 anos, chegando até o posto de capitão-de-longo-curso. Percorreu a Ásia, África, América e Europa, de onde tirou o material para os 17 romances que escreveu, além de novelas e dezenas de contos. Este O Coração das Trevas (1902) é um dos seus maiores sucessos como escritor, tendo sido adaptado para o cinema por F.F.Coppola sob o nome de Apocalypse Now, com Marlon Brando e Dennis Hopper.”

“O Coração das Trevas já foi interpretado de diversas formas. Numa leitura historicista, pode ser considerado uma dura crítica ao colonialismo. Ou, numa visão psicológica, pode ser encarado como uma jornada pesadelo adentro, ou mesmo um esbarrão com a própria loucura, da qual Marlow escapa mas não Kurtz. Ou, para o antropólogo ou sociólogo, o livro pode ser um debate sobre o contraste entre civilização e selvageria. Ou ainda pode ser visto como uma reflexão moral sobre o bem e o mal, que parecem ser os pontos centrais da trama. Como tão poucas páginas podem conter tanta coisa?
Um aspecto algumas vezes enervante do livro (mas talvez seja exatamente o que gera seu encanto) é a forma como Conrad deixa o próprio leitor na escuridão. As trevas são sempre mencionadas mas nunca definidas, o horror balbuciado por Kurtz nunca chega a ser explicado, tudo é calculado para que o mistério se perpetue. Ser explícito, como o próprio Conrad escreveu anos mais tarde, é fatal para o fascínio de qualquer obra artística, roubando a sugestividade e destruindo a ilusão.”
(Clique)
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O guri Conrad, em 1863
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Um comentário:

Anônimo disse...

Boa seleção de um texto precioso (que está magnificamente ilustrado neste espaço)...
Sou suspeita pra falar né? Amo literatura e minha irmã, hehehehehe...
Beijos!

(Valdirene)